sexta-feira, 20 de agosto de 2010

FAÇAM SUA OBJEÇÕES, INICIEM UM DEBATE, ESTE É UM CANAL DEMOCRÁTICO!

TIRE DÚVIDAS, DÊ SUGESTÕES E PROPONHA QUESTÕES PARA DEBATERMOS ON LINE

A TERCEIRA MARGEM DO RIO.

ESTE TEXTO D GUIMARÃES ROSA É ÓTIMO, PENSE NA POSSIBILIDADE DE VIVER EM UMA POSIÇÃO QUE NÃO É NEM DIREITA NEM ESQUERDA, MAS NO MEIO.
A Terceira margem do Rio
(Guimarães Rosa )
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto.
Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar.
Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro.
Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia. Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá.
Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto...
Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro,
1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos.
Estudo
1. Principais personagens
O pai, a mãe, o filho (personagem-narrador), a filha e o outro filho.
Observação: o fato de os personagens não terem nome reforça a idéia de que sua caracterização física e psicológica não é colocada em primeiro plano. O que prevalece é o referencial dos membros de uma família, uma vez que são identificados por termos como pai, mãe, etc.
2. Fatos principais
􀁺 O pai mandou fazer uma canoa.
􀁺 Disse adeus aos familiares e saiu rio afora.
􀁺 O pai percorria o rio em ponto eqüidistante das margens, indo e voltando pelas águas, mas sem sair daquele espaço próximo à sua casa.
􀁺 Parentes, amigos e conhecidos reuniram-se para tentar entender aquela atitude, fazendo cogitações sobre os possíveis motivos que o levaram a agir assim.
􀁺 O filho mais velho levava para a beira do rio um pouco de comida que pegava escondido.
􀁺 A mãe mandou chamar seu irmão para ajudar na fazenda e nos negócios.
􀁺 O tempo ia passando e o pai continua no seu percurso de ir e vir, sem
aproximar-se das margens.
􀁺 A filha casou-se , teve um menino e quis mostrá-lo ao pai dela, levando-o para a beira do rio e esperando juntamente os outros familiares.
􀁺 A família chamou e esperou; o pai não apareceu e todos choraram.
􀁺 A filha mudou-se com o marido e o filho.
􀁺 O irmão mais novo resolveu ir para a cidade.
􀁺 A mãe, envelhecida, foi residir com a filha.
􀁺 O filho envelhecera e sofria os primeiros problemas da velhice.
􀁺 O filho foi para a beira do rio e acenou com um lenço.
􀁺 Avistou o pai e chamou por ele, propondo tomar o seu lgar na canoa.
􀁺 O pai ouviu, ficou de pé e fez um aceno, concordando.
􀁺 Ele fez a canoa rumar para o local onde estava o filho.
􀁺 Quando o filho viu o pai se aproximar, apavorou-se e correu dali.
􀁺 O filho adoeceu.
3. Clímax
O clímax do conto concentra toda a carga emocional que vai se acumulando ao longo da narrativa; é o momento que o pai, depois de tantos e tantos anos, faz um aceno para o filho quando ele se propõe a tomar seu lugar na canoa. Durante toda a história, todos esperavam qualquer comunicação com o pai, o que nunca ocorreu até esse momento específico da seqüência narrativa.
4. O desfecho
O desfecho é profundamente triste: o filho corre do pai e, conseqüentemente, dos sofrimentos que teria de passar, caso tomasse seu lugar na canoa. Essa atitude traz ao personagem um sentimento de culpa e de completo fracasso. Resta-lhe somente a experiência da morte iminente.

O QUE É VIOLÊNCIA: TEMAS DE FILOSOFIA ARANHA

Escola: ______________________________________ professor: Irzair Ciro Correa
Disciplina: Filosofia
Proposta de atividades: formar grupos de 4 pessoas; ler o texto; debater sobre o tema e sua pertinência na contemporaneidade.
Refletir sobre: em que medida a violência nos afeta; em que medida outras pessoas são afetadas por nossas ações violentas?
Faça as atividades no caderno, conserve o texto em boas condições, outras pessoas podem se beneficiar dele.

O que é violência?

Aqueles que são objeto de violência transformam-se em vítimas, pois são prejudicados de alguma forma pelo uso da força ou privados de algum bem, seja ele a vida, a integridade do corpo ou do espírito, a dignidade, a liberdade de movimento ou os bens materiais. Por isso constitui violência matar, ferir, prender, roubar, humilhar, explorar o trabalho alheio.
Existe violência quando alguém voluntariamente faz uso da força para obrigar uma pessoa ou grupo a agir de forma contrária a sua vontade, ou quando os impede de agir de acordo com sua própria intenção. Ou, ainda, quando priva alguém de um bem.
Tipos de violência
Nem sempre é fácil identificar a violência. Por exemplo, uma cirurgia não constitui violência, primeiro porque visa o bem do paciente, depois porque é feita com o consentimento do doente. Mas certamente será violência se a operação for realizada sem necessidade ou se o paciente for usado como cobaia de experimento científico sem a devida autorização.
Mas, se o motorista causador de um acidente alegar que não foi violento por não ter causado prejuízo voluntariamente, é preciso verificar se não houve descuido ou omissão da parte dele. Afinal, a violência passiva ocorre toda vez que deixamos de fazer determinadas ações cujo cumprimento seria necessário para salvar vidas ou evitar sofrimentos. É nesse sentido que podemos lastimar os altos índices de acidentes de trabalho apontados no Brasil pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Outras vezes, estamos diante da violência indireta. Por exemplo, se sabemos que o clorofluorcarbono (CFC) destrói a camada de ozônio da Terra e com isso provoca câncer de pele, usar um desodorante spray contendo CFC significa agressão não só aos contemporâneos, como também às gerações futuras.
Há situações em que não existe violência física, mas outro tipo de violência, de natureza psicológica. Por exemplo, não existe violência quando tentamos superar as contradições e conflitos convencendo, por meio da persuasão, os que pensam de maneira diferente da nossa. No entanto, existe violência quando, mesmo sem usar o chicote ou a palmatória, o pai ou o professor exigem o comportamento desejado, doutrinando as crianças, impondo valores e dobrando-as para a obediência cega e aceitação passiva da autoridade. Nesse caso, embora não haja violência física, existe violência simbólica, já que a força que se exerce é de natureza psicológica e atua sobre a consciência, exigindo a adesão irrefletida que só aparentemente é voluntária.
Ocorre violência simbólica também nos casos em que um candidato a cargo público distorce informações para conseguir votos, quando a imprensa manipula a opinião pública ou ainda quando o governo usa propaganda e slogans para ocultar seus desmandos. Enfim, constitui violência simbólica toda manipulação ideológica que obriga a adesão sem críticas das consciências e das vontades. O manipulador dirige, molda as formas de pensar e agir de maneira que o manipulado acredita estar pensando e agindo por livre vontade. Portanto, a violência existe, mas não se apresenta como tal.
Nem sempre a violência "salta à vista", não sendo claramente percebida. Às vezes não é possível se conhecer o agente causador, outras vezes a ação nem é prevista nos códigos penais, e, portanto a tendência é não reconhecê-la como violência propriamente dita. Por exemplo, a existência da pobreza parece ser conseqüência inevitável de uma certa "ordem natural" que comanda as relações entre os homens. Haveria, então, pessoas pobres ou países subdesenvolvidos devido à incompetência, ao descuido ou à fatalidade: "Afinal, sempre foi assim...", é o que se costuma dizer. Porém, na raiz desses problemas encontramos a violência da desigualdade social decorrente da injusta repartição das tarefas e dos privilégios que levam ao irregular aproveitamento dos bens produzidos pela comunidade. Nesse sentido, é violência a fome crônica em amplas regiões do mundo enquanto resultado do planejamento econômico que visa, em primeiro lugar, o interesse dos negócios. É também violência a criança permanecer fora da escola, privando-se de educação e do saber acumulado pela sociedade em que vive, porque precisa trabalhar, ou por outros motivos decorrentes dos desfavorecimentos da classe a que pertence.
Chamamos de violência branca a esse tipo de privação, devido ao fato de não ser sangrenta (vermelha). Mas nem por isso pode ser considerada menos cruel.
A violência pode ser justa?
Resta saber se toda e qualquer violência é condenável. Na história da humanidade sempre temos notícia de exemplos de violência que servem à opressão. Mas, às vezes, a violência se torna o único recurso de defesa e garantia dos valores humanos. Nesse caso, mesmo sendo uma forma de constrangimento e destruição, é benéfica por estar a serviço da vida. É o caso da defesa da própria vida, da vida dos que amamos, da liberdade da pátria, das revoltas de escravos, das insurreições dos povos colonizados. A violência é justa e legítima quando é libertadora, ou quando visa evitar a morte, desde que seja usada como último recurso, já tendo sido esgotados todos os outros caminhos possíveis.
Uma vez desencadeada a violência legítima, é preciso que ela seja provisória, passageira, desaparecendo assim que forem cessadas as causas que provocaram a primeira violência contra a qual se insurgira a violência legítima. Evidentemente não é fácil saber quando a violência é justa, mesmo porque nem sempre é possível perceber de imediato quem é opressor e quem é oprimido.
A "violência legítima" do Estado
Já vimos que, a partir da Idade Moderna, o Estado significa a posse de um território em que o comando sobre seus habitantes se faz a partir da centralização cada vez maior do poder. Para isso são utilizadas instituições políticas, jurídicas, administrativas, policiais e econômicas. O Estado pode impor leis, fazê-las cumprir e punir os infratores, já que dispõe de aparelho repressivo constituído por tribunais, polícia, prisões, exército, se tornando, por isso, o único a quem é permitido o uso da violência legítima.
Com muita freqüência, a história nos tem mostrado o abuso desses poderes; absolutismo dos reis na Idade Moderna e,no século XX, autoritarismo na América Latina e totalitarismo na Itália (Mussolini), Alemanha (Hitler) e União Soviética (Stálin).
No entanto, ainda quando o Estado se configura democrático, ocorrem formas de violência que, mesmo não sendo claramente percebidas, nem por isso são menos eficazes. Por meio da violência simbólica, o Estado interfere em inúmeros setores da vida pública de modo a fazer reproduzir comportamentos desejáveis para a manutenção do poder. Ê nesse sentido que Marx considera o Estado um instrumento a serviço da classe dominante. Aos aparelhos repressivos do Estado (tribunais, prisões etc.), o filósofo francês Althusser acrescenta os aparelhos ideológicos de Estado, tais como escola, família, meios de comunicação de massa, instituições de cultura, partidos políticos, a partir dos quais o Estado transmite a ideologia e exerce a violência simbólica.
Foucault, outro filósofo francês, prefere examinar a questão do poder não enquanto manifestação do Estado e de seus aparelhos, mas como uma rede de micropoderes que se estende por todo o corpo social. Para Foucault, a ordem na sociedade é estabelecida pelas normas aceitas racionalmente, legitimadas pelo saber que, a partir dos séculos XVII e XVIII, cria a sociedade disciplinar, caracterizada pela organização do espaço, controle do tempo e vigilância do olhar, e que visa ao controle dos corpos: a disciplina fabrica corpos submissos e adestrados, corpos "dóceis". Não é por acaso que, na referida época, surgem os "locais de vigilância" como a fábrica, a caserna, a escola, o hospital, o hospício, a prisão. Embora algumas dessas instituições tivessem similares em tempos anteriores, em nenhum caso o controle e vigilância aconteceram de forma tão eficaz quanto a partir da Idade Moderna.
Violência e política
A violência tem sido objeto de atenção de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos desejosos de compreender a ampliação do fenômeno nos mais diversos campos da atividade humana. Desde a década de 70, temos visto subir assustadoramente os índices de violência urbana no mundo inteiro. Os tipos de violência variam conforme o país e, evidentemente, dependem também do desenvolvimento econômico. Mesmo assim, seja no Primeiro ou no Terceiro Mundo, há preocupação com o aumento dos casos de seqüestres, estupros, assaltos a mão armada e até roubo de tênis "de marca" nas portas das escolas. A ordem instituída se fragiliza diante do poder dos cartéis de narcotráfico. Cada vez mais grupos de jovens buscam emoções nas drogas e nos confrontos violentos entre "gangues" rivais.
Para complicar o quadro, no início da década de 90 o Brasil enfrenta também o agravamento da injusta distribuição de renda. No país das hierarquias, do desprezo pelos direitos humanos fundamentais, não há como evitar o desenvolvimento da "cultura da violência".
O número vergonhoso de assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil indica o desprezo por outra violência anterior: a do aumento da miséria, que encaminha os pequenos ao trabalho precoce ou a atividades marginais. O número enorme de crianças abandonadas ou carentes (com família, mas sem condições para sustentá-las) leva a distorções difíceis de reverter. Como passam a ser infratoras, são recolhidas às instituições totais (reformatórios), onde, além de serem submetidas a maus-tratos, se aperfeiçoam nas "artes" do crime. Ou, então, grupos clandestinos de "justiceiros" são contratados para exterminar os pequenos "bandidos". Essa questão tem sido objeto de discussões até no exterior, e provocou a elaboração do controvertido Estatuto da Criança e do Adolescente. A "cultura da violência" também transparece nos atos coletivos de linchamento em que a "justiça é feita com as próprias mãos", bem como na aceitação passiva, por uma parte da população, de grupos como o Esquadrão da Morte, que fez inúmeras vítimas, sobretudo na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
É a partir desse clima de violência que a classe média e as camadas populares mais pobres — geralmente as mais atingidas pela violência institucional — equivocadamente aplaudem iniciativas como as de implantação da pena de morte, considerada por alguns como a solução para a diminuição dos índices de criminalidade.
A pretexto de "fazer justiça com as próprias mãos", à revelia das instituições do Direito, o Esquadrão da Morte se caracteriza pela clandestinidade e pela violência contra aqueles que, por sua vez, já são vítimas da marginalização social e econômica. Quando e como vamos interromper o círculo vicioso da violência?
Mesmo considerando a violência um fenômeno existente em todos os tempos e lugares, sendo ilusão imaginar um mundo em que ela se extinguisse de vez, não há como negar que estamos vivendo uma época de exaltação da violência. Basta ver que filmes atraem multidões ao cinema, ou servem tranqüilamente de entretenimento para as crianças na Sessão da Tarde. Muitos jovens se ocupam com lazeres nada dóceis como "rachas" de automóvel, jogos de guerra (paint-ball), quando não saem depredando o patrimônio público, destruindo telefones, caixas de correio, placas de sinalização.
Por isso, seria simplismo reduzir a explicação do aumento da violência e do crime como resultado apenas da miséria crescente. É verdade que esta é também uma das causas da violência, por isso convém verificar se, na sociedade em que vivemos, todas as pessoas têm igual chance de educação, saúde preventiva, habitação, alimentação, acesso à Justiça; se há amparo à velhice, aos doentes e inválidos. Mas também é preciso constatar se há pluralismo (coexistência de opiniões divergentes); se há tolerância (não-discriminação dos diferentes); se não há censura e se as informações circulam livremente; ou se a produção e o consumo da cultura não constituem privilégio de poucos.
Mas também convém saber se os homens não perderam o desejo de sonhar e não se encontram embrutecidos por trabalhos desinteressantes ou por relações superficiais. A violência tende a progredir em sociedades cujos homens permanecem pouco criativos, que perderam o sentido da existência e a esperança em dias melhores.
A violência tenderá a diminuir nas sociedades verdadeiramente democráticas. Por isso, o combate à violência passa primeiro pela necessidade de implantação da democracia. E ainda mais; a violência se expande onde não existe cidadania. Por cidadãos entendemos homens participantes da política, independentemente da posição social que ocupam. Uma sociedade de cidadãos não admite o prevalecimento de relações hierarquizadas separando os homens em "inferiores" e "superiores", o que permite o domínio de uns sobre outros.

DEFINIÇÃO DE VIOLENCIA DE BOBBIO DICIONÁRIO DE POLITICA

DEFINIÇÃO DE VIOLENCIA DO DICIONÁRIO DE POLITICA DO BOBBIO

I. DEFINIÇÃO. — Por Violência entende-se a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo). Para que haja Violência é preciso que a intervenção física seja voluntária: o motorista implicado num acidente de trânsito não exerce a Violência contra as pessoas que ficaram feridas, enquanto exerce Violência quem atropela intencionalmente uma pessoa odiada. Além disso, a intervenção física, na qual a Violência consiste, tem por finalidade destruir, ofender e coagir. É Violência a intervenção do torturador que mutila sua vítima; não é Violência a operação do cirurgião que busca salvar a vida de seu paciente. Exerce Violência quem tortura, fere ou mata; quem, não obstante a resistência, imobiliza ou manipula o corpo de outro; quem impede materialmente outro de cumprir determinada ação. Geralmente a Violência é exercida contra a vontade da vítima. Existem, porém, exceções notáveis, como o suicídio ou os atos de Violência provocados pela vítima com finalidade propagandística ou de outro tipo.
A Violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de maneira imediata o corpo de quem a sofre. É indireta quando opera através de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra (por exemplo, o fechamento [1292] de todas as saídas de um determinado espaço) ou através da destruição, da danificação ou da subtração dos recursos materiais. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: uma modificação prejudicial do estado físico do indivíduo ou do grupo que é o alvo da ação violenta.
Entendido no sentido puramente descritivo, o termo Violência pode considerar-se substancialmente sinônimo de força (para as relações entre estes dois conceitos v. FORÇA). Ele, porém, distingue-se de maneira precisa da noção de "poder". O poder é a modificação da conduta do indivíduo ou grupo, dotada de um mínimo de vontade própria (v. PODER) . A Violência é a alteração danosa do estado físico de indivíduos ou grupos. O poder muda a vontade do outro; a Violência, o estado do corpo ou de suas possibilidades ambientais e instrumentais. Naturalmente as intervenções físicas podem ser empregadas como um meio para exercer o poder ou para aumentar o próprio poder no futuro. Grande parte de quanto vamos analisar mais adiante é dedicada exatamente ao exame das funções que tais intervenções podem ter nas relações de poder próprias do domínio político. Isto, porém, não muda o fato de que, por si só, independentemente dos seus efeitos mediatos, a intervenção física é Violência e não poder. A distinção entre Violência e poder é importante mesmo sob o aspecto dos resultados que será possível respectivamente obter com estes dois métodos de intervenção. Com o poder, ou seja, intervindo sobre a vontade do outro, pode-se obter, em hipótese, qualquer conduta externa ou interna, tanto uma ação como uma omissão, tanto um acreditar como um desacreditar.
Com o único meio imediato da Violência, isto é, intervindo sobre o corpo, pode-se obter uma omissão: imobilizando ou prendendo a vítima podemos impedi-la de realizar qualquer ação socialmente relevante, mas alterando o estado físico do outro não se pode obrigá-lo a fazer nada de socialmente relevante. Assim como não se pode fazer com que ele acredite em alguma coisa, nem podemos impedir que ele acredite em alguma coisa a não ser que recorramos à medida extrema de suprimi-lo. Neste campo, todavia, a bioquímica e a farmacologia não estão longe de criar instrumentos de intervenção física que poderão anular, numa medida maior ou menor os tradicionais limites da eficácia da Violência.
A distinção entre Violência e poder envolve também o poder coercitivo baseado nas sanções físicas e comporta, por isso, a distinção entre Violência em ato e ameaça de Violência. Com efeito, esta distinção é importante, se prescindirmos de alguns casos limite, pois nas relações do poder coercitivo a Violência intervém sob a forma de punição, quando a ameaça não conseguiu a finalidade desejada, e sanciona neste caso a falência do poder.
Na Violência que golpeia e suprime um mártir, expressa-se, de uma parte, a superioridade da força do perseguidor, mas, de outra, expressa-se também a impotência de suas ameaças mais graves para dobrar a vontade do mártir, que prefere a morte a renegar seu deus. Devem, porém, distinguir-se da Violência as relações de poder coercitivo que se baseiam em sanções diferentes da força: por exemplo, um prejuízo econômico, a retirada do afeto de uma pessoa amada, a destituição de um cargo, a retirada do respeito de um grupo de amigos ou colegas, etc. Em relação a estes tipos de poder coercitivo, fala-se muitas vezes de Violência, assim como se fala, algumas vezes, de Violência referindo-se à MANIPULAÇÃO (V.) .
É indubitável que este emprego de Violência pode achar justificativa na ampla área de significados que é própria da palavra na linguagem comum, pois os poderes de coerção e de manipulação são todas as relações nas quais quem exerce o poder obriga o outro, abertamente ou de maneira velada, a manter uma conduta desagradável e por isso de qualquer modo faz Violência à sua vontade. De outra parte, o uso indiscriminado do termo Violência, designando todas estas relações de poder, além das intervenções físicas, produz o grave dano de colocar, na mesma categoria, relações que são muito diversas entre si pelos caracteres estruturais, pelas funções e pelos efeitos, conseqüentemente provocando mais confusão do que clareza. Assim sendo, é mais oportuno designar essas relações de poder com os termos mais corretos de "coerção" e "manipulação", que têm melhores condições para expressar também aquele elemento de opressão que se desejaria evidenciar usando a palavra Violência, reservando para a palavra Violência a definição restrita e técnica que apresentamos acima e que prevalece na literatura política e sociológica.
Esclarecida assim a distinção analítica entre ameaça de Violência e Violência em ato, é preciso evidenciar a conexão significativa que existe entre estes dois fenômenos. Numa relação de poder coercitivo, baseada em sanções físicas e dotada de uma certa continuidade, o uso da Violência como punição para uma desobediência, enquanto mostra a ineficácia da ameaça, no caso particular da desobediência, pode, ao mesmo tempo, acrescentar a eficácia da ameaça, portanto, do poder coercitivo para o futuro. A eficácia de uma ameaça depende, de fato, de um lado, do grau de sofrimento que pode ocasionar o interventor físico no ameaçado e, de outro lado, o grau de sua [1293] credibilidade. A credibilidade da ameaça depende, por sua vez, de o ameaçado reconhecer que aquele que faz a ameaça possui os meios para efetuá-la, além de estar realmente determinado a fazê-lo. Nada prova melhor estes dois requisitos de credibilidade da ameaça do que o fato de que o elemento ameaçador realizou efetivamente e regularmente em ato a punição em casos anteriores e análogos.
Este efeito demonstrativo da Violência em ato é tão importante que a ele se recorre, mesmo além dos casos de punição: particularmente através de ações que podemos chamar "demonstrações de força". Este tipo de Violência é usado, geralmente, para instaurar, consolidar ou ampliar o controle coercitivo de uma dada situação. A Violência não tem aqui a função de reforçar uma determinada ameaça, mas a de uma advertência geral, que tende a consolidar todas as possíveis ameaças futuras. Por isso, na análise de um determinado poder coercitivo, baseado na ameaça de sanções físicas, é preciso ter presente, especialmente numa dimensão temporal, tanto a ameaça da Violência, quanto a Violência em ato como punição, quanto ainda a Violência em ato como ação "demonstrativa".