terça-feira, 10 de maio de 2011

Sugestão de leitura

NORBERTO BOBBIO, DEMOCRACIA E LIBERALISMO.
HANS KELSEN A DEMOCRACIA.
NO WWW.4SHARED.COM HÁ MUITA LITERATURA GRATUITA
OU ENTÃO FALE COMIGO, TENHO OS LIVROS DISPONÍVEIS EM PDF

Para o seminário sobrre democracia II

DEMOCRACIA.


I. NA TEORIA DA DEMOCRACIA CONFLUEM TRÊS TRADIÇÕES HISTÓRICAS.

        Na teoria contemporânea da Democracia confluem três grandes tradições do pensamento político: a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três formas de Governo, segundo a qual a Democracia, como Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia, como Governo de poucos; b) a teoria medieval, de origem "romana, apoiada na soberania popular, na base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel, nascida com o Estado moderno na forma das grandes monarquias, segundo a qual as formas históricas de Governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a aristocracia), onde se origina

 [320] 

o intercâmbio característico do período pré-revolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de república. O problema da Democracia, das suas características, de sua importância ou desimportância é, como se vê, antigo. Tão antigo quanto a reflexão sobre as coisas da política, tendo sido reproposto e reformulado em todas as épocas. De tal maneira isto é verdade, que um exame do debate contemporâneo em torno do conceito e do valor da Democracia não pode prescindir de uma referência, ainda que rápida, à tradição.

II. A TRADIÇÃO ARISTOTÉLICA DAS TRÊS FORMAS DE GOVERNO.

         Uma das primeiras disputas de que se tem notícia em torno das três formas de Governo é narrada por Heródoto (III, 80- 83). Otane, Megabizo e Dario discutem sobre a futura forma de Governo da Pérsia. Enquanto Megabizo defende a aristocracia e Dario a monarquia, Otane toma a defesa do Governo popular, que segundo o antigo uso grego chama de Isonomia, ou igualdade das leis, ou igualdade diante da lei, com o argumento que ainda hoje os defensores da Democracia têm como fundamental: "Como poderia a monarquia ser coisa perfeita, se lhe é lícito fazer tudo o que deseja sem o dever de prestar contas?" Igualmente clássico é o argumento com o qual o fautor da oligarquia e, em seu encalço o fautor da monarquia, condenam o Governo democrático: "Não há coisa... mais estulta e mais insolente que uma multidão incapaz". Como pode governar bem "aquele que não recebeu instrução nem conheceu nada de bom e de conveniente e que desequilibra os negócios públicos intrometendo-se sem discernimento, semelhante a uma torrente caudalosa"?

          Das cinco formas de Governo descritas por Platão na República, aristocracia, timocracia, oligarquia,
  democracia e tirania, só uma delas, a aristocracia, é boa. Da Democracia se diz que "nasce quando os       pobres, após haverem conquistado a vitória, matam alguns adversários, mandam outros para o exílio e    dividem com os remanescentes, em condições paritárias, o Governo e os cargos públicos, sendo estes determinados, na maioria das vezes, pelo sorteio" (557a) e é caracterizada pela "licença". O mesmo Platão, além disso, reproduz no Político a tradicional das formas puras e das formas degeneradas e a Democracia é aí definida como o "Governo do número" (29ld), "Governo de muitos" (302c) e "Governo da multidão" (303a). Distinguindo as formas boas das formas más de Governo com base no critério da legalidade e da ilegalidade, a Democracia é, nesse livro, considerada a menos boa das formas boas e a menos má das formas más de Governo: "Sob todo o aspecto é fraca e não traz nem muito benefício nem muito dano, se a compararmos com outras formas, porque nela estão pulverizados os poderes em pequenas frações, entre muitos. Por isso, de todas as formas legais, é esta a mais infeliz, enquanto que entre todas as que são contra a lei é a melhor. Se todas forem desenfreadas, é na Democracia que há mais vantagem para viver; por outro lado, se todas forem bem organizadas, é nela que há menor vantagem para viver" (303 a e b). Nas Leis, na tripartição clássica entra a bipartição (que depois de Maquiavel nos habituamos a chamar de moderna) entre as duas "matrizes das formas de Governo", que são a monarquia cujo protótipo é o Estado persa e a democracia cujo protótipo é a cidade de Atenas. Ambas são, se bem que por razões opostas, más; uma, por excesso de autoridade e outra pelo excesso de liberdade. Até na variedade das classificações, a Democracia, uma vez mais, é objurgada como o regime da "liberdade bem desenfreada" (7016).

     Na tipologia aristotélica, que distingue três formas puras e três formas corruptas, conforme o detentor do poder governa no interesse geral ou no interesse próprio, o "Governo da maioria" ou "da multidão", distinto do Governo de um só ou do de poucos, é chamado "politia", enquanto o nome de Democracia é atribuído à forma corrupta, sendo a mesma definida como o "Governo de vantagem para o pobre" e contraposta ao "Governo de vantagem para o monarca" (tirano) e ao "Governo de vantagem para os ricos" (oligarquia). A forma de Governo que, na tradição pós-aristotélica, se torna o Governo do povo ou de todos os cidadãos ou da maioria deles é no tratado aristotélico governo de maioria, somente enquanto Governo de pobres e é, portanto Governo de uma parte contra a outra parte, embora da parte geralmente mais numerosa. Da Democracia entendida em sentido mais amplo, Aristóteles subdistingue cinco formas: 1) ricos e pobres participam do Governo em condições paritárias. A maioria é popular unicamente porque a classe popular é mais numerosa. 2) Os cargos públicos são distribuídos com base num censo muito baixo. 3) São admitidos aos cargos públicos todos os cidadãos entre os quais os que foram privados de direitos civis após processo judicial. 4) São admitidos aos cargos públicos todos os cidadãos sem exceção. 5) Quaisquer que sejam os direitos políticos, soberana é a massa e não a lei. Este último caso é o da dominação dos demagogos, ou seja, a verdadeira forma corrupta do Governo popular.
        Salvo poucas exceções, a tripartição aristotélica foi acolhida em toda a tradição do pensamento

  [321]

ocidental, pelo menos até Hegel, ao qual chega quase extenuada, e tornou-se um dos lugares comuns da tratadística política. Para assinalar algumas etapas deste longo percurso, recordamos Marsílio de Pádua (Defensor pacis, I, 8), São Tomás de Aquino (Summa Theologica, I-II, qu. 105, art. 1); Bodin (De La repúblique, II, 1), Hobbes (Decive, cap. VII, Leviathan, cap. XIX), Locke (Segundo tratado sobre o Governo, cap. X), Rousseau (Contrato social, III, 4; 5, 6), Kant (Metafísica dos costumes. Doutrina do direito, § 51), Hegel (Linhas fundamentais de filosofia do direito, § 273). Não faltaram algumas variações, entre as quais se destacam três principais: a) a distinção entre formas de Estado e formas de Governo, elaborada por Bodin, com base na distinção entre a titularidade e o exercício da soberania, com o que se pode ter uma monarquia, um Estado em que o poder soberano pertence ao rei, governado democraticamente, pelo fato de as magistraturas serem atribuídas pelo rei a todos indistintamente, ou uma democracia aristocrática, como foi Roma durante um certo período de sua história, ou uma aristocracia democrática, e assim por diante; b) a supressão da distinção entre formas puras e formas corruptas, feita por Hobbes, com base no princípio de que para um poder soberano absoluto não se pode estabelecer nenhum critério para distinguir o uso do abuso de poder, e portanto o Governo bom do Governo mau; c) a degradação introduzida por Rousseau, das três formas de Governo nos três modos de exercício do poder executivo, ficando firme o princípio de que o poder legislativo, isto é, o poder que caracteriza a soberania pertence ao povo, cuja reunião num corpo político através do contrato social Rousseau chama de república, não de Democracia (que é apenas uma das formas com que se pode organizar o poder executivo).

III. A TRADIÇÃO ROMANO-MEDIEVAL DA SOBERANIA POPULAR.

        Os juristas medievais elaboraram a teoria da soberania popular, partindo de algumas conhecidas passagens do Digesto, tiradas principalmente de Ulpiano (Democracia, I, 4, 1), onde depois da celebérrima afirmação quod principi placuit, legis habet vigorem, se diz que o príncipe tem autoridade porque o povo lha deu (utpote cum lege regia, quae de imperio eius lata est, populus et et in eum omne suum imperium et potestatem conferat), e o de Juliano (Democracia I,3, 32), onde, a propósito do costume, como fonte de direito, se diz que o povo cria o direito não apenas através do voto, dando vida às leis, mas também rebus ipsis et factis, dando vida aos costumes.
          O primeiro passo serviu para demonstrar que, fosse qual fosse o efetivo detentor do poder soberano, a fonte originária deste poder seria sempre o povo e abriu o caminho para a distinção entre a titularidade e o exercício do poder, que teria permitido, no decorrer da longa história do Estado democrático, salvar o princípio democrático não obstante a sua corrupção prática. O segundo passo permitiu verificar que, nas comunidades onde o povo transferiu para outros o poder originário de fazer as leis, sempre conservara, apesar de tudo, o poder de criar direito através da tradição. Com respeito a este segundo tema, a tese que fautores e adversários da soberania popular debateram era se o costume tinha ou não força para ab-rogar a lei (como é sabido, os textos de Justiniano sobre este ponto são contraditórios). Por outras palavras, se o direito derivado diretamente do povo tinha maior força ou menor força que o direito emanado do imperador. Em relação ao primeiro tema, a disputa entre defensores e opositores da soberania popular se concentrou sobre o significado que deve ser dado à passagem do poder do povo ao imperador. Tratava-se, por outras palavras, de estabelecer se esta passagem deve ser considerada uma transferência definitiva, tanto do exercício como da titularidade (uma translatio imperii, no verdadeiro sentido) ou uma concessão temporária e revogável em princípio, com a conseqüência de que a titularidade do poder teria permanecido no povo e ao príncipe seria confiado apenas o exercício do poder (uma concessio imperii pura e simples). Entre os antigos glosadores e mais conhecidos fautores da tese concessio está Azo, segundo o qual o povo jamais abdicou inteiramente de seu poder. Basta lembrar que, depois de tê-lo transferido, o revogou em várias ocasiões, afirmando Hugolino, abertamente, que o povo jamais transferiu o poder ao imperador de modo tal que não ficasse algum vestígio junto de si, porque mais do que tudo constituiu o imperador como seu procurador.
          Numa das obras fundamentais do pensamento político medieval, certamente a mais rica de esquemas destinados a serem desenvolvidos pelo pensamento político, moderno, o Defensor pacis de Marsílio de
Pádua, se afirma e demonstra abertamente, com vários argumentos, o princípio de que o poder de fazer leis, em que se apóia o poder soberano, diz respeito unicamente ao povo, ou à sua parte mais poderosa
(valentior pars), o qual atribui a outros não mais que o poder executivo, isto é, o poder de governar no âmbito das leis. De um lado, portanto "o poder efetivo de instituir ou eleger um Governo diz respeito ao legislador ou a todo o corpo dos cidadãos, assim como lhe diz respeito o poder de fazer leis... Da mesma forma diz respeito ao legislador o poder de corrigir e até de depor o governante, onde 


[322]

houver vantagem comum para isso" (I, 15, 2). Por outro lado, enquanto a causa prima do Estado é o legislador, o governante (a pars principans) é a causa secundaria ou, segundo outras expressões mais cheias, "é a causa instrumental e executiva", no sentido de que quem governa age pela "autoridade que lhe foi outorgada para tal fim pelo legislador e segundo a forma que este lhe indicar" (I, 15, 4). Esta teoria, assim já tão bem elaborada por Marsílio, segundo o qual, dos dois poderes fundamentais do Estado — o legislativo e o executivo —, o primeiro enquanto pertença exclusiva do povo é o poder principal, enquanto que o segundo, que o povo delega a outros sob forma de mandato revogável, é poder derivado, e um dos pontos cardeais das teorias políticas dos escritores dos séculos XVII e XVIII. Estes são considerados com razão os pais da Democracia moderna. Há, apesar de tudo, entre Locke e Rousseau, uma diferença essencial na maneira de conceber o poder legislativo: para Locke, este deve ser exercido por representantes, enquanto que para Rousseau deve ser assumido diretamente pelos cidadãos.

     A doutrina da soberania popular não deve ser confundida com a doutrina contratualista (v.   CONTRATUALISMO), seja porque a doutrina contratualista nem sempre teve êxitos democráticos
(pense-se em Hobbes, para dar um exemplo comum, mas não se esqueça Kant que é contratualista mas não democrático), seja porque muitas teorias democráticas, sobretudo na medida em que se caminha para a Idade Contemporânea, prescindem completamente da hipótese contratualista. Do mesmo modo que nem todo o CONTRATUALISMO é democrático, assim nem todo o democratismo é contratualista. Isto é certo na medida em que o CONTRATUALISMO representa, em algumas das suas mais conhecidas expressões, um dos grandes filões do pensamento democrático moderno. A teoria da soberania popular e a teoria do contrato social estão estreitamente ligados, por duas razões, pelo menos: o populus concebido como universitas civium é ele mesmo, na sua origem, o produto de um acordo (o chamado pactum societatis); uma vez constituído o povo, a instituição do Governo, quaisquer que sejam as modalidades da transmissão do poder, total ou parcial, definitivo ou temporário, irrevogável ou revogável, acontece na forma própria de contrato (o chamado pactum subjectionis). Através da teoria da soberania popular, a teoria do CONTRATUALISMO entra de pleno direito na tradição do pensamento democrático moderno e torna-se um dos momentos decisivos para a fundação da teoria moderna da democracia.

IV. A TRADIÇÃO REPUBLICANA MODERNA.

         Malgrado o pensamento grego ter dado preferência à teoria das três formas distintas de Governo, sabe-se que ele não desconhece, como já vimos nas Leis de Platão, a contraposição entre as duas formas opostas da Democracia e da monarquia. O desenvolvimento da história romana repropõe ao pensamento político, mais do que o tema da tripartição (que foi talvez representado na teorização da república romana como Governo misto), o tema da contraposição entre reino e república, ou entre república e principado. Nos escritores medievais, a tripartição aristotélica e a bipartição entre reino e república correm muitas vezes de forma paralela: Santo Tomás acolhe juntamente com a tripartição clássica a distinção entre regimen politicum et regimen regale, fundada sobre a distinção entre Governo baseado nas leis e Governo não baseado nas leis.
       Certamente foi a meditação da história da república romana, unida às considerações sobre as coisas do próprio tempo, que fez escrever a Maquiavel, no início da obra que ele dedicou ao principado, que "todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados". Se bem que a república, em sua contraposição à monarquia, não se identifique com a Democracia, com o "Governo popular", até porque nas repúblicas democráticas existem repúblicas aristocráticas (para não falar do Governo misto que o próprio Maquiavel vê como um exemplo perfeito na república romana), na noção idealizada da república que de Maquiavel passará através dos escritores radicais dos séculos XVII e XVIII até à Revolução Francesa, entendida em sua oposição ao governo real, como aquela forma de Governo em que o poder não está concentrado nas mãos de um só mas é distribuído variadamente por diversos órgãos colegiados, embora, por vezes, contrastando entre si, se acham constantemente alguns traços que contribuíram para formar a imagem ou pelo menos uma das imagens da Democracia moderna, que hoje, cada vez mais freqüentemente, é definida como regime policrático oposto ao regime monocrático. Sobre esta linha, um escritor, que é considerado justamente como um precursor do democratismo moderno, Johannes Althusius, expondo no último capítulo de sua Política methodice digesta (1603), a diferença entre as várias formas de Governo, distingue-as segundo o summus magistratus por monarchicus ou poliarchicus, usando uma terminologia que se tornará familiar para a ciência política americana com Robert Dahl, o qual no A preface to democratic theory (1956) elabora, de encontro às teorias tradicionais ou que ele considera


 [323]

tradicionais, da Democracia madisoniana e populista, a teoria da Polyarchal democracy. Ainda uma vez, se por Democracia se entende a forma aristotélica, a república não é Democracia; mas no seu caráter peculiar de "Governo livre", de regime antiautocrático, encerra um elemento fundamental da Democracia moderna na medida em que por Democracia se entende toda a forma de Governo oposta a toda a forma de despotismo.
           Não obstante a diferença conceptual, as duas imagens da Democracia e da república terminam por sobrepor-se e por confundir-se nos escritores estudados recentemente por Franco Venturi, os quais exaltam, juntamente com as repúblicas antigas, as repúblicas pequenas e livres do tempo, desde a Holanda até Gênova, Veneza, Lucca, e Genebra do citoyen virtueux Jean-Jacques. O Oceana de Harrington, que é um dos pontos de referência do republicanismo inglês de Setecentos, é exaltada pelo maior defensor da idéia republicana da Inglaterra, John Toland, como "a mais perfeita forma de Governo popular que jamais existiu". Modelada sobre o exemplo das repúblicas antigas e modernas, é, na realidade, uma democracia igualitária, não só formalmente, fundada que é sobre a rotação das magistraturas que acontece através das eleições livres dos cidadãos, mas também, e substancialmente, porque é regida por uma férrea lei agrária, que prevê a distribuição eqüitativa de terras de modo que ninguém seja tão poderoso que possa oprimir o outro. Das três formas de Governo descritas por Montesquieu, república, monarquia e despotismo, a forma republicana de Governo compreende tanto a república democrática como a aristocrática, quase sempre tratadas separadamente. Quando o discurso visa os princípios de um Governo, o princípio próprio da república, a virtude, é o princípio clássico da Democracia e não da aristocracia. E tanto é verdade, que, a respeito da aristocracia, Montesquieu foi levado a afirmar que se "a virtude é assim tão necessária no Governo aristocrático", não o é de um modo "absoluto" (I, 3, 4).
        Não se esqueça que para Saint Just e Robespierre a nova democracia que varrerá, definitivamente, o despotismo ou o reino do terror, será o "reino da virtude". Se a mola do Governo popular, na paz, é a virtude, soam as célebres palavras pronunciadas por Robespierre no Discours sur les príncipes de la morale politique — a mola do Governo popular na revolução é, a um tempo, a virtude e o terror. Sem a virtude, o terror é funesto; a virtude, sem o terror, é impotente. Mas é sobretudo em Rousseau, grande teórico da Democracia moderna, que o ideal republicano e democrático coincidem perfeitamente. No Contrato social confluem, até se fundirem, a doutrina clássica da soberania popular, a quem compete, através da formação de uma vontade geral inalienável, indivisível e infalível, o poder de fazer as leis, e o ideal, não menos clássico, mas renovado, na admiração pelas instituições de Genebra, da república, a doutrina contratualista do Estado fundado sobre o consenso e sobre a participação de todos na produção das leis e o ideal igualitário que acompanhou na história, a idéia republicana, levantando-se contra a desigualdade dos regimes monárquicos e despóticos. O Estado, que ele constrói, é uma Democracia, mas prefere chamá-lo, seguindo a doutrina mais moderna das formas de Governo, de "república". Mais exatamente, retomando a distinção feita por Bodin entre forma de Estado e a forma de Governo, Rousseau enquanto chama república à forma do Estado ou do corpo político, considera a Democracia uma das três formas possíveis de Governo de um corpo político, que, enquanto tal, ou é uma república ou não é nem sequer um Estado mas o domínio privado deste ou daquele poderoso que tomou conta dele e o governa através da força.

V. DEMOCRACIA E LIBERALISMO.

     Ao longo de todo o século XIX, a discussão em torno da Democracia se foi desenvolvendo principalmente através de um confronto com as doutrinas políticas dominantes no tempo, o liberalismo de um lado e o socialismo do outro.
        No que se refere à relação de concepção liberal do Estado, o ponto de partida foi o célebre discurso de Benjamin Constant sobre A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Para Constant, a liberdade dos modernos, que deve ser promovida e desenvolvida, é a liberdade individual em sua relação com o Estado, aquela liberdade de que são manifestações concretas as liberdades civis e a liberdade política (ainda que não necessariamente estendida a todos os cidadãos) enquanto a liberdade dos antigos, que a expansão das relações tornou impraticável, e até danosa, é a liberdade entendida como participação direta na formação das leis através do corpo político cuja máxima expressão está na assembléia dos cidadãos. Identificada a Democracia propriamente dita sem outra especificação, com a Democracia direta, que era o ideal do próprio Rousseau, foi-se afirmando, através dos escritores liberais, de Constant e Tocqueville e John Stuart Mill, a idéia de que a única forma de Democracia compatível com o Estado liberal, isto é, com o Estado que reconhece e garante alguns direitos fundamentais, como são os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de reunião, etc, fosse a Democracia representativa ou parlamentar, onde o dever de fazer leis diz respeito,

[324]

não a todo o povo reunido em assembléia, mas a um corpo restrito de representantes eleitos por aqueles cidadãos a quem são reconhecidos direitos políticos.
         Nesta concepção liberal da Democracia, a participação do poder político, que sempre foi considerada o elemento caracterizante do regime democrático, é resolvida através de uma das muitas liberdades individuais que o cidadão reivindicou e conquistou contra o Estado absoluto. A participação é também redefinida como manifestação daquela liberdade particular que indo além do direito de exprimir a própria opinião, de reunir-se ou de associar-se para influir na política do país, compreende ainda o direito de eleger representantes para o Parlamento e de ser eleito. Mas se esta liberdade é conceptualmente diversa das liberdades civis, enquanto estas são meras faculdades de fazer ou não fazer, enquanto aquela implica a atribuição de uma capacidade jurídica específica, em que as primeiras são chamadas também de liberdades negativas e a segunda de liberdade positiva, o fato mesmo de que a liberdade de participar, ainda que indiretamente, na formação do Governo esteja compreendido na classe das liberdades, mostra que, na concepção liberal da Democracia, o destaque é posto mais sobre o mero fato da participação como acontece na concepção pura da Democracia (também chamada participacionista), com a ressalva de que esta participação seja livre, isto é, seja uma expressão e um resultado de todas as outras liberdades. Deste ponto de vista, se é verdade que não pode chamar-se, propriamente, liberal, um Estado que não reconheça o princípio democrático da soberania popular, ainda que limitado ao direito de uma parte (mesmo restrita) dos cidadãos darem vida a um corpo representativo, é ainda mais verdadeiro que segundo a concepção liberal do Estado não pode existir Democracia senão onde forem reconhecidos alguns direitos fundamentais de liberdade que tornam possível uma participação política guiada por uma determinação da vontade autônoma de cada indivíduo.
       Em geral, a linha de desenvolvimento da Democracia nos regimes representativos pode figurar-se basicamente em duas direções: a) no alargamento gradual do direito do voto, que inicialmente era restrito a uma exígua parte dos cidadãos com base em critérios fundados sobre o censo, a cultura e o sexo e que depois se foi estendendo, dentro de uma evolução constante, gradual e geral, para todos os cidadãos de ambos os sexos que atingiram um certo limite de idade (sufrágio universal); b) na multiplicação dos órgãos representativos (isto é, dos órgãos compostos de representantes eleitos), que num primeiro tempo se limitaram a uma das duas assembléias legislativas, e depois se estenderam, aos poucos, à outra assembléia, aos órgãos do poder local, ou, na passagem da monarquia para a república, ao chefe do Estado. Em uma e em outra direção, o processo de democratização, que consiste no cumprimento cada vez mais pleno do princípio-limite da soberania popular, se insere na estrutura do Estado liberal entendido como Estado, in primis, de garantias. Por outras palavras, ao longo de todo o curso de um desenvolvimento que chega até nossos dias, o processo de democratização, tal como se desenvolveu nos Estados, que hoje são chamados de Democracia liberal, consiste numa transformação mais quantitativa do que qualitativa do regime representativo Neste contexto histórico a Democracia não se apresenta como alternativa (como seria no projeto de Rousseau rejeitado por Constant) ao regime representativo, mas é o seu complemento; não é uma reviravolta mas uma correção.

VI. DEMOCRACIA E SOCIALISMO.

           Não é diferente a relação entre Democracia e socialismo. Também no que diz respeito ao socialismo, nas suas diferentes versões, o ideal democrático representa um elemento integrante e necessário, mas não constitutivo.
          Integrante porque uma das metas que se propuseram os teóricos do socialismo foi o reforço da base popular do Estado. Necessário, porque sem este reforço não seria jamais alcançada aquela profunda transformação da sociedade que os socialistas das diversas correntes sempre tiveram como perspectiva. Por outro lado, o ideal democrático não é constitutivo do socialismo, porque a essência do socialismo sempre foi a idéia da revolução das relações econômicas e não apenas das relações políticas, da emancipação social, como disse Marx, e não apenas da emancipação política do homem. O que muda na doutrina socialista a respeito da doutrina liberal é o modo de entender o processo de democratização do Estado. Na teoria marxistaengelsiana, para falar apenas desta, o sufrágio universal, que para o liberalismo em seu desenvolvimento histórico é o ponto de chegada do processo de democratização do Estado, constitui apenas o ponto de partida. Além do sufrágio universal, o aprofundamento do processo de democratização da parte das doutrinas socialistas acontece de dois modos: através da crítica da Democracia apenas representativa e da conseqüente retomada de alguns temas da Democracia direta e através da solicitação de que a participação popular e também o controle do poder a partir de baixo se estenda dos órgãos de decisão política aos de decisão econômica, de alguns centros do aparelho estatal até à empresa, da sociedade política até à sociedade civil pelo 


[325]

que se vem falando de Democracia econômica, industrial ou da forma efetiva de funcionamento dos novos órgãos de controle (chamados "conselhos operários"), colegial, e da passagem do auto-governo para a autogestão.
            Nas efêmeras instituições criadas pelo povo parisiense por ocasião da Comuna de Paris, Marx, como é conhecido, achou poder colher alguns elementos de uma nova forma de Democracia que chamou "autogoverno dos produtores". As características distintivas desta nova forma de Estado com respeito ao regime representativo são principalmente quatro: a) enquanto o regime representativo se funda sobre a distinção entre poder executivo e poder legislativo, o novo Estado da Comuna deve ser "não um órgão parlamentar, mas de trabalho, executivo e legislativo, ao mesmo tempo"; b) enquanto o regime parlamentar inserido no tronco dos velhos Estados absolutistas deixou sobreviver consigo órgãos não representativos e relativamente autônomos, os quais, desenvolvidos anteriormente na instituição parlamentar, continuam a fazer parte essencial do aparelho estatal, como o exército, a magistratura e a burocracia, a Comuna estende o sistema eleitoral a todas as partes do Estado; c) enquanto a representação nacional característica do sistema representativo é inteiramente distinta da proibição de mandato autoritário, cuja conseqüência é a irrevogabilidade do cargo durante toda a duração da legislatura, a Comuna "é composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nas diversas circunscrições de Paris, responsáveis e revogáveis em qualquer momento; d) enquanto o sistema parlamentar não conseguiu destruir a centralização política e administrativa dos velhos Estados, antes, pelo contrário, confirmou através da instituição de um parlamento nacional, o novo Estado deveria ter descentralizado, ao máximo, as próprias funções nas "comunas rurais" que teriam enviado seus representantes a uma assembléia nacional à qual seriam deixadas algumas "poucas, mas importantes funções .. . cumpridas por funcionários comunais".
         Colhendo sua inspiração nas reflexões de Marx sobre a Comuna, Lenin, em Estado e revolução e nos escritos e discursos do período revolucionário enunciou as diretrizes e bases da nova Democracia dos conselhos que fizeram o centro do debate entre os principais teóricos do socialismo na década de 20, desde Gramsci até Rosa Luxemburg, desde Max Adler até Korsch, para terminar em Anton Pannekoek, cuja obra Organização revolucionária e conselhos operários é de 1940. O que caracteriza a Democracia dos conselhos em relação à Democracia parlamentar é o reconhecimento de que na sociedade capitalista houve um deslocamento dos centros de poder dos órgãos tradicionais do Estado para a grande empresa, e que, portanto o controle que o cidadão está em grau de exercer através dos canais tradicionais da Democracia política não é suficiente para impedir os abusos de poder cuja abolição é o escopo final da Democracia.
          O novo tipo de controle não pode acontecer senão nos próprios lugares da produção e é exercido não pelo cidadão abstrato da Democracia formal mas pelo cidadão trabalhador através dos conselhos de fábrica. O conselho de fábrica torna-se assim o germe de um novo tipo de Estado, que é o Estado ou a comunidade dos trabalhadores em contraposição ao Estado dos cidadãos,- através de uma expansão deste tipo de órgãos em todos os lugares da sociedade onde há decisões importantes a tomar. O sistema estatal, em seu complexo, será uma federação de conselhos unificados através do reagrupamento ascendente, partindo deles até aos vários níveis territoriais e administrativos.

VII. DEMOCRACIA E ELITISMO.

         A crítica que de um lado o liberalismo faz à Democracia direta, e a crítica, que de outro lado o socialismo move à Democracia representativa, são conscientemente inspiradas em certos pressupostos ideológicos relacionados com diversas orientações ligadas aos valores últimos. No final do século passado, contra a Democracia, entendida exatamente em seu sentido tradicional de doutrina da soberania popular, se formulou uma crítica que pretendeu, ao contrário, fundar-se exclusivamente sobre a observação dos fatos: uma crítica não ideológica, mas científica, pelo menos na temática, da parte dos teóricos das minorias governamentais, ou como serão chamados mais tarde, com um nome que fará fortuna, da parte de elites como Ludwig Gumplowicz, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto. Segundo estes escritores, a soberania popular é um ideal-limite e jamais correspondeu ou poderá corresponder a uma realidade de fato, porque em qualquer regime político, qualquer que seja a "fórmula política" sob a qual os governantes e seus ideólogos o representem, é sempre uma minoria de pessoas, que Mosca chama de "classe política", aquela que detém o poder efetivo. Com esta teoria se conclui a longa e afortunada história das três formas de Governo, que, como se viu, está na origem da história do conceito de Democracia desde o momento em que, em toda a sociedade, de todos os tempos e em todos os níveis de civilização, o poder está nas mãos de uma minoria, não existe outra forma de Governo senão a oligárquica. O que não implica que todos os regimes sejam iguais, mas simplesmente que se uma diferença pode ser destacada, esta não pode

 [326]

depender de um critério extrínseco como o do número de governantes (um, poucos, muitos), mas dos vários modos com que uma classe política se forma, se reproduz, se renova, organiza e exerce o poder. O mesmo Mosca distinguiu a respeito do modo com que se formam as classes políticas, as que transmitem o poder hereditariamente e as que se alimentam das classes inferiores; a respeito do modo como exercem o poder, aquelas que o exercem sem controle e aquelas que são controladas a partir de baixo; nesse sentido, contrapôs, no primeiro caso, Democracia e aristocracia; no segundo. Democracia e autocracia, identificando pelo menos dois tipos de regimes que, embora tenham uma classe política dominante, podem dizer-se democráticos de bom direito. Nesta linha, a teoria das elites recupera muito do que de realístico e não do que meramente ideológico contém a doutrina tradicional da Democracia e tem, por conseqüência, não tanto a negação de existência de regimes democráticos mas mais uma redefinição que terminou por tornar-se preponderante na hodierna ciência política de Democracia. Em Capitalismo, socialismo e Democracia (1942) Joseph Schumpeter contrapõe à doutrina clássica da Democracia, segundo a qual a Democracia consiste na realização do bem comum através da vontade geral que exprime uma vontade do povo ainda não perfeitamente identificada, uma doutrina diversa da Democracia que leva em conta o resultado considerado realisticamente inexpugnável pela teoria das elites. Segundo Schumpeter, existe Democracia onde há vários grupos em concorrência pela conquista do poder através de uma luta que tem por objeto o voto popular. Uma definição deste tipo leva em conta a importância primária, não desprezível, da liderança em qualquer formação política e ao mesmo tempo permite distinguir um regime do outro na base do modo como as diferentes lideranças disputam o poder, especificando, na Democracia, aquela forma de regime em que a contenda pela conquista do poder é resolvida em favor de quem conseguir obter, numa disputa livre, o maior número de votos.
        Alargando e precisando esta temática, uma redefinição de Democracia que quisesse levar em conta a ineliminável presença de mais classes políticas em concorrência entre si deveria compreender, pelo menos, o exame de três pontos: recrutamento, extensão e fonte do poder da classe política. Com respeito ao recrutamento, uma classe política pode chamar-se democrática quando seu pessoal é escolhido através de uma competição eleitoral livre e não através de transmissão hereditária ou de cooptação. Com respeito à extensão, quando o pessoal de uma classe política é tão numeroso que se divide, de maneira estável, em classe política de Governo e classe política de oposição e consegue cobrir a área do Governo central e do Governo local em suas diversas articulações e não é, por outra parte, constituído de um grupo tão pequeno e fechado que dirige um país inteiro através de comissários ou funcionários dependentes. Com respeito à fonte de poder, quando este é exercido por uma classe política representativa, com base numa delegação periodicamente renovável e fundada sobre uma declaração de confiança, e no âmbito de regras estabelecidas (constituição) e não em virtude de dotes carismáticos do chefe ou como conseqüência da tomada violenta do poder (golpe de Estado, revolta militar, revolução, etc.) (v. também ELITES, TEORIAS DAS).

VIII. O SIGNIFICADO FORMAL DE DEMOCRACIA.

        Considerando, de um lado, o modo como doutrinas opostas a respeito dos valores fundamentais, doutrinas liberais e doutrinas socialistas consideraram a Democracia não incompatível com os próprios princípios e até como uma parte integrante do próprio credo, é perfeitamente correto falar de liberalismo democrático e de socialismo democrático, e é crível que um liberalismo sem Democracia não seria considerado hoje um "verdadeiro" liberalismo e um socialismo sem Democracia, um "verdadeiro" socialismo. Olhando, por outro lado, o modo como uma doutrina inicialmente hostil à Democracia, como a teoria das elites, se foi conciliando com ela, pode concluir-se que por Democracia se foi entendendo um método ou um conjunto de regras de procedimento para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas (ou seja, das decisões que abrangem a toda a comunidade) mais do que uma determinada ideologia. A Democracia é compatível, de um lado, com doutrinas de diverso conteúdo ideológico, e por outro lado, com uma teoria, que em algumas das suas expressões e certamente em sua motivação inicial teve um conteúdo nitidamente antidemocrático, precisamente porque veio sempre assumindo um significado essencialmente comportamental e não substancial, mesmo se a aceitação destas regras e não de outras pressuponha uma orientação favorável para certos valores, que são normalmente considerados característicos do ideal democrático, como o da solução pacífica dos conflitos sociais, da eliminação da violência institucional no limite do possível, do freqüente revezamento da classe política, da tolerância e assim por diante.
          Na teoria política contemporânea, mais em prevalência nos países de tradição democrático-liberal, as definições de Democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou 


[327]

menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou, como também se diz, de "procedimentos universais". Entre estas: 1) o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau; 2) junto do supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7) tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre; 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo.
        Como se vê, todas estas regras estabelecem como se deve chegar à decisão política e não o que decidir. Do ponto de vista do que decidir, o conjunto de regras do jogo democrático não estabelece nada, salvo a exclusão das decisões que de qualquer modo contribuiriam para tornar vãs uma ou mais regras do jogo. Além disso, como para todas as regras, também para as regras do jogo democrático se deve ter em conta a possível diferença entre a enunciação do conteúdo e o modo como são aplicadas. Certamente nenhum regime histórico jamais observou inteiramente o ditado de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos. Não é possível estabelecer quantas regras devem ser observadas para que um regime possa dizer-se democrático. Pode afirmar-se somente que um regime que não observa nenhuma não é certamente um regime democrático, pelo menos até que se tenha definido o significado comportamental de Democracia.

IX. ALGUMAS TIPOLOGIAS DOS REGIMES DEMOCRÁTICOS.

    No âmbito desta noção de Democracia e portanto no terreno firme destas regras é costume distinguir várias espécies de regimes democráticos. A multiplicidade das tipologias depende da variedade dos critérios adotados para a classificação das diversas formas de Democracia.
      Apresentaremos a lista de algumas, tomando por base a profundidade do nível de estrutura social global em que elas se integram. A um nível mais superficial se coloca a distinção fundada sobre o critério jurídico-institucional entre regime presidencial e regime parlamentar. A diferença entre os dois regimes está na relação diferente entre legislativo e executivo. Enquanto no regime parlamentar, a democraticidade do executivo depende do fato de que ele é uma emanação do legislativo, o qual, por sua vez, se baseia no voto popular, no regime presidencial, o chefe do executivo é eleito diretamente pelo povo. Em conseqüência disso ele presta contas de sua ação não ao Parlamento mas aos eleitores que podem sancionar sua conduta política negando-lhe a reeleição.
        Em nível imediatamente inferior se encontra a tipologia que leva em consideração o sistema dos partidos, o qual apresenta duas variantes. Com base no número dos partidos (isto é, com base no critério numérico que caracteriza a tipologia aristotélica), distinguem-se sistemas bipartidários e sistemas multipartidários (o sistema unipartidário, pelo menos em suas formas mais rígidas, não pode ser incluído entre as formas democráticas de Governo). Com base no modo com que os partidos se dispõem uns para ou contra os outros no sistema, isto é, com base nos chamados pólos de atração ou de repulsa dos diversos partidos, se distinguem regimes bipolares, em que os vários partidos se agregam em torno dos dois pólos do Governo e da oposição e multipolares, em que os vários partidos se dispõem voltados para o centro e para as duas oposições, uma de direita e outra de esquerda. Deve advertir-se que também, neste caso, um sistema monopolar, onde não existe uma oposição reconhecida, não pode ser considerado entre as formas democráticas de Governo. A segunda variante, introduzida por Giovanni Sartori oferece, em relação à anterior, pelo menos, duas vantagens: a) permite levar em conta alianças de partidos com a conseqüência de que um sistema multipartidário pode ser bipolar e, portanto, pode ter as mesmas características de um sistema bipartidário; b) permite uma ulterior distinção entre sistemas polarizados e sistemas não polarizados no caso de haver nas duas extremidades franjas que tendam à ruptura do sistema (partidos anti-sistema).
       Daí deriva a distinção 


[328]

ulterior entre multipartidarismo extremo e multipartidarismo moderado. Tendo em conta, além do sistema dos partidos, também o sistema da cultura política, Arend Lijphart distinguiu os regimes democráticos com base na maior ou menor fragmentação da cultura política em centrífugos e centrípetos (distinção que corresponde, grosso modo, à precedente entre regimes polarizados e não polarizados). Introduzindo, em seguida, um segundo critério fundado sobre a observação de que o comportamento das elites pode estar mais inclinado para as coligações (coalescent) ou tornar-se mais competitivo, e combinando-o com o precedente, especificou outros dois tipos de Democracia que chamou de "Democracia consociativa" (consotiational) e "Democracia despolitizada", segundo o comportamento não competitivo das elites se junte a uma cultura fragmentada ou homogênea. A Democracia consociativa tem seus maiores exemplos na Áustria, Suíça, Holanda e Bélgica e foi chamada, tendo em vista especialmente o caso suíço, de concordante (concordant democracy, Konkordanz demokratie) e definida como o tipo de Democracia em que acontecem entendimentos de cúpula entre líderes de subculturas rivais para a formação de um Governo estável.
      Descendo a um nível ainda mais profundo, que é o nível das estruturas da sociedade inferior, Gabriel Almond distinguiu três tipos de Democracia: a) Democracia de alta autonomia dos subsistemas (Inglaterra e Estados Unidos), entendendo-se por subsistemas os partidos, os sindicatos e os grupos de pressão, em geral; b) Democracia de autonomia limitada dos subsistemas (França da III República, Itália depois da Segunda Guerra Mundial e Alemanha de Weimar); c) Democracia de baixa autonomia dos subsistemas (México). Modelos ideais mais do que tipos históricos são as três formas de Democracia analisadas por Robert Dahl no seu livro A preface to democratic theory (1956): a Democracia madisoniana que consiste sobretudo nos mecanismos de freio do poder e coincide com o ideal constitucional do Estado limitado pelo direito ou pelo Governo da lei contra o Governo dos homens (no qual sempre se manifesta historicamente a tirania); a Democracia populista, cujo princípio fundamental é a soberania da maioria; a Democracia poliárquica que busca as condições da ordem democrática não em expedientes de caráter constitucional, mas em pré-requisitos sociais, isto é, no funcionamento de algumas regras fundamentais que permitem e garantem a livre expressão do voto, a prevalência das decisões mais votadas, o controle das decisões por parte dos eleitores, etc.

X. DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL.

       Juntamente com a noção comportamental de Democracia, que prevalece na teoria política ocidental e no âmbito da "political science", foi-se difundindo, na linguagem política contemporânea, um outro significado de Democracia que compreende formas de regime político como as dos países socialistas ou dos países do Terceiro Mundo, especialmente, dos países africanos, onde não vigoram ou não são respeitadas mesmo quando vigoram algumas ou todas as regras que fazem que sejam democráticos, já depois de longa tradição, os regimes liberais-democráticos e os regimes sociais-democráticos. Para evitar a confusão entre dois significados tão diversos do mesmo termo prevaleceu o uso de especificar o conceito genérico de Democracia como um atributo qualificante e, assim, se chama de "formal" a primeira e de "substancial" a segunda.
    Chama-se formal à primeira porque é caracterizada pelos chamados "comportamentos universais" (universali procedurali), mediante o emprego dos quais podem ser tomadas decisões de conteúdo diverso (como mostra a co-presença de regimes liberais e democráticos ao lado dos regimes socialistas e democráticos). Chama-se substancial à segunda porque faz referência prevalentemente a certos conteúdos inspirados em ideais característicos da tradição do pensamento democrático, com relevo para o igualitarismo. Segundo uma velha fórmula que considera a Democracia como Governo do povo para o povo, a democracia formal é mais um Governo do povo; a substancial é mais um Governo para o povo.
        Como a democracia formal pode favorecer uma minoria restrita de detentores do poder econômico e
portanto não ser um poder para o povo, embora seja um Governo do povo, assim uma ditadura política pode favorecer em períodos de transformação revolucionária, quando não existem condições para o exercício de uma Democracia formal, a classe mais numerosa dos cidadãos, e ser, portanto, um Governo para o povo, embora não seja um Governo do povo.
        Também foi observado (Macpherson) que o conceito de Democracia atribuído aos Estados socialistas e aos Estados do Terceiro Mundo espelha mais fielmente o significado aristotélico antigo de Democracia. Segundo este conceito, a Democracia é o Governo dos pobres contra os ricos, isto é, é um Estado de classe, e tratando-se da classe dos pobres, é o Governo da classe mais numerosa ou da maioria (e é esta a razão pela qual a Democracia foi mais execrada do que exaltada no decurso dos séculos).
        Para quem como Macpherson defende que o discurso em torno da Democracia não se resolve em definir e redefinir uma palavra que pelo seu 


[329]

significado eulógico é referida a coisas diferentes, o negócio deve ser determinado em torno de um conceito geral de Democracia dividido em species.
      Uma dessas espécies seria a Democracia liberal; a outra, a Democracia dos países socialistas e assim por diante. Por outro lado, porém, fica a dificuldade de achar o que é que estas duas espécies têm de comum.
      A resposta extremamente genérica que este autor foi constrangido a dar, segundo o qual as três espécies de Democracia têm em comum o escopo último, que é o de "prover as condições para o pleno e livre desenvolvimento das capacidades humanas essenciais de todos os membros da sociedade" (p. 37) mostra a inutilidade da tentativa. Para não nos perdermos em discussões inconcludentes é necessário reconhecer que nas duas expressões "Democracia formal" e "Democracia substancial", o termo Democracia tem dois significados nitidamente distintos. A primeira indica um certo número de meios que são precisamente as regras de comportamento acima descritas independentemente da consideração dos fins.
        A segunda indica um certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para os alcançar. Uma vez que na longa história da teoria democrática se entrecruzam motivos de métodos e motivos ideais, que se encontram perfeitamente fundidos na teoria de Rousseau segundo a qual o ideal igualitário que a inspira (Democracia como valor) se realiza somente na formação da vontade geral (Democracia como método), ambos os significados de Democracia são legítimos historicamente. Mas a legitimidade histórica do seu uso não autoriza nenhuma ilação sobre a eventualidade de terem um elemento conotativo comum. Desta falta de um elemento conotativo comum é prova a esterilidade do debate entre fautores das Democracias liberais e fautores das Democracias populares sobre a maior ou menor democraticidade dos respectivos regimes. Os dois tipos de regime são democráticos segundo o significado de Democracia escolhido pelo defensor e não é democrático segundo o significado escolhido pelo adversário. O único ponto sobre o qual uns e outros poderiam convir é que a Democracia perfeita — que até agora não foi realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto — deveria ser simultaneamente formal e substancial.

BIBLIOGRAFIA.

R. ARON, Démocratie ET totalitarisme, Paris 1965; G. BURDEAU, La democrazia (1956), trad. ital., Comunità, Milano 1964; L. CAVALLI, La democrazia manipolata, Milano 1965; R. A. DAHL, A Preface to democratic theory, Chicago 1956; Id., Poliarchia (1971), trad. ital., F. Angeli, Milano 1981; M. I. FINLEY, La democrazia degli antichi e del moderni (1972), trad. ital.. Laterza, Bari 1973; La democrazia in Grecia, ao cuidado de G. FASSÒ. ibid. 1959; C. J. FRIEDRICH, Governo costituzionale e democrazia (1950), trad. ital.. Neri Pozza, Vicenza 1960; F. A. HERMENS, La democrazia rappresentativa (1964), trad. ital., Vallecchi. Firenze 1968; H. KELSEN, La democrazia, Il Mulino, Bologna 1981; J. C. LIVINGSTON e R. C. THOMPSON, IL consenso del governati (1966), trad. ital., Giuffrè, Milano 1971; C. B. MACPHERSON, The real world of democracy, Oxford 1966; Id., La vita e i tempi della democrazia liberale (1977), trad. ital., F. Angeli,

Milano 1981; R. MILIBAND. Marxismo e democrazia borghese (1977), trad. ital., Laterza, Bari 1978; F. OPPENHEIM, Democracy. Characteristics included and excluded, in "The Monist", 29-50, 1971; G. SARTORI, Democrazia e definizioni. Bologna 1957 (ed. Inglesa Democratic Theory, Detroit 1962); W. SCHLANGEN, Democrazia e società borghese (1973), trad. ital., Il Mulino, Bologna 1979; J. L. TALMON, Le origini della democrazia totalitaria (1952), trad. ital., Il Mulino, Bologna 19772; W. ULLMANN, Principi di governo e política nel Medioevo (1961), irad. ital., Il Mulino, Bologna 1972; F. VENTURI, Utopia e riforma nell'illummismo, Einaudi, Torino 1970.

[NORBERTO BOBBIO]

sábado, 7 de maio de 2011

Para o seminário sobre democracia

A QUESTÃO DEMOCRÁTICA

CHAUÍ M. Convite à Filosofia. Editora Ática, São Paulo, 1990  


As experiências totalitárias: fascismo e nazismo

     O século XX, durante os decênios de 1920-1940, viu acontecer uma experiência política sem precedentes: o totalitarismo, realizado por duas práticas políticas, o fascismo (originado na Itália) e o nazismo ou nacional-socialismo (originado na Alemanha). A Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, perde territórios e é obrigada a pagar somas vultosas aos vencedores para ressarci-los dos prejuízos da guerra. A economia está destroçada, reinam o desemprego, a recessão e a inflação galopante. A crise toma proporções excessivas quando, em 1929, a Bolsa de Valores de Nova York “quebra”, levando à ruína boa parte do capital mundial.
       Partindo da crítica marxista ao liberalismo, mas recusando a idéia de revolução proletária comunista, o austríaco Adolf Hitler se oferece à burguesia e à classe média para salvá-las da revolução operária. Propõe o reerguimento da Alemanha através do fortalecimento do Estado, do nacionalismo geopolítico (a nação é o “espaço vital” do povo, que deve conquistar e manter territórios necessários ao seu desenvolvimento econômico) e da aliança com os setores conservadores do capital industrial e, sobretudo do capital financeiro. Hitler é eleito, em eleições livres e diretas, para o parlamento e, a seguir, dá o golpe de Estado nazista.
       A Itália, embora estivesse do lado dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, ficou insatisfeita com as compensações que lhe foram dadas e, ao mesmo tempo, tentava manter-se economicamente pela exploração de colônias na África. Benito Mussolini, como Hitler, partiu da crítica marxista ao liberalismo, mas, como Hitler, recusava a idéia de revolução proletária comunista. Em vez dela, propôs o fortalecimento do Estado nacional, a aliança com setores conservadores do capital industrial e financeiro, a guerra de conquista de territórios e o nacionalismo baseado nas glórias do antigo Império Romano.
        Por que nazismo? Essa palavra é a abreviação do nome de um partido político ao qual Hitler se filiou. Inicialmente, o partido denominava-se Partido Operário Alemão, mas Hitler propôs que fosse denominado Partido Operário Alemão Nacional-Socialista (Nationalsozialistische Nazi). Operário, para indicar a oposição aos liberais, mas nacional-socialista para indicar a oposição aos comunistas e socialistas (críticos do nacionalismo por ser uma ideologia necessária ao capital).

[548]

         A palavra fascismo foi inventada por Mussolini a partir do vocábulo italiano fascio, feixe. É dupla a significação do fascio: por um lado, refere-se ao conjunto de machados reunidos por meio de um feixe de varas, carregados por funcionários que precediam a aparição pública dos magistrados na antiga Roma, os machados significando o poder do Estado para decapitar criminosos e as varas, a unidade do povo romano em torno do Estado; por outro lado, refere-se a uma tradição popular do século XIX, em que certas comunidades, lutando por seus interesses e direitos, simbolizavam sua luta e unidade pelos fasci. Mussolini se apropria do símbolo romano e popular, criando por toda a Itália os fasci de combate.
     Embora de origem e significação diferentes, nazismo e fascismo possuem aspectos comuns: o antiliberalismo: não como afirmação do socialismo e sim como defesa da total intervenção do Estado na economia e na sociedade civil. Em sua fase inicial, ambos se apresentam contra a ordem burguesa e conseguem a adesão da maioria da classe trabalhadora, que sofria as misérias da recessão e do desemprego;
 a colaboração de classe: afirmação de que o capital e o trabalho não são contrários nem contraditórios, mas podem e devem colaborar em harmonia para o bem da coletividade. No lugar das classes sociais, propõem (e criam) as corporações de ofício e de categoria, de modo a ocultar a divisão entre o capital e o trabalho. A idéia de Estado Corporativo havia sido elaborada pela Igreja Católica e exposta na bula do papa Leão XIII, Rerum Novarum, escrita contra socialistas e comunistas; aliança com o capital industrial monopolista e financeiro: isto é, com os setores do capital cuja vocação é imperialista, exigindo a conquista de novos territórios para a ampliação do mercado e o acúmulo do capital; nacionalismo: a realidade social é a Nação, entendida como unidade territorial e identidade racial, lingüística, de costumes e tradições. A nação é o espírito do povo, a pátria-mãe dos antepassados de sangue, una, única e indivisa; corporativismo: a sociedade, como propunha o papa Leão XIII, deve ser organizada pelo Estado sob a forma de corporações do trabalho e do capital, hierarquizadas por suas funções e harmonizadas pela política econômica do Estado; partido único que organiza as massas: em lugar de classes sociais, a nação é vista como constituída pelo povo e este é a massa organizada pelo partido único, que a exprime e representa. O partido organiza a sociedade não só em sindicatos corporativos, mas também em associações: de jovens, de mulheres, de crianças, de artistas, de escritores, de cientistas, de bairro, de ginástica e dança, de música, etc. A relação entre a sociedade (a nação) e o Estado é feita pela mediação do partido;

[549]

 ideologia de classe média: no modo de produção capitalista, há uma camada social que não é proletária-camponesa, nem é proprietária privada dos meios de produção, não é burguesa; trata-se da classe média, constituída por comerciantes, profissionais liberais, intelectuais, artistas, artesãos independentes e funcionários públicos. Essa classe valoriza os valores e os costumes da burguesia e teme a proletarização, sendo por isso anti-socialista e anticomunista. Embora admire a burguesia, sente rancor por não possuir a riqueza e os privilégios burgueses.

     Com efeito, a classe média acredita no individualismo competitivo, na idéia do “homem que se faz sozinho”, graças à disciplina, à boa família, aos bons costumes e ao trabalho. Mas, ao contrário de suas expectativas, não consegue, apesar dos esforços, “subir na vida” e responsabiliza a “cobiça dos ricos” por sua situação inferiorizada, atribuindo-a à desordem do liberalismo. Por essas características, a classe média é conservadora e reacionária, tendo predileção por propostas políticas que lhe prometam organizar o Estado e a economia de tal modo que desapareçam o liberalismo e o risco do socialismo-comunismo. É o destinatário privilegiado e preferido do nazismo e do fascismo; imperialismo belicista: pela aliança com o capital monopolista e financeiro, pela ideologia nacionalista expansionista, pela ideologia de classe média, que espera das conquistas militares melhoria de suas condições sociais, nazismo e fascismo são políticas de guerra e de conquista. Hitler falará do sangue germânico que corre nas veias dos povos da Europa central e deverá ser “reconduzido” à mãe-pátria alemã pela guerra. Mussolini falará nas glórias do Império Romano e em sua reconquista pelas guerras italianas; educação moral e cívica: para garantir a adesão das massas à ideologia nazifascista, o Estado introduz a educação moral e cívica, pela qual crianças e adolescentes aprenderão os valores nazi-fascistas de pátria, disciplina, força do caráter, formação de corpos belos, saudáveis, poderosos, necessários aos guerreiros dos novos impérios; propaganda de massa: o nazi-fascismo introduz, pela primeira vez na História, a prática (hoje cotidiana e banal) da propaganda dirigida às massas. Essa propaganda é política, voltada para a manifestação de sentimentos, emoções e paixões, desvalorizando a razão, o pensamento e a consciência crítica. Por meio do rádio e da imprensa, de cartazes, desfiles, bandas, jogos atléticos, filmes, o nazi-fascismo procura incutir na massa a devoção incondicional à pátria e aos chefes, o amor à hierarquia, à disciplina e à guerra; prática da censura e da delação: o Estado, através do partido, das associações e de aparelhos especializados (policiais e militares), controla o pensamento, as ciências e as artes por meio da censura, queimando livros e obras de arte “contrários” à pátria e aos chefes, prendendo e torturando os dissidentes, perseguindo os “inimigos internos”. Estimula também, sobretudo em crianças e


[550]

 jovens, a prática da delação contra os dissidentes, “desviantes” e “inimigos internos” do Estado; racismo: menos forte no fascismo, é um componente essencial do nazismo, que inventa a idéia de “raça ariana” ou “raça nórdica”, superior a todas as outras, devendo conquistar algumas para que a sirvam, e aniquilar outras porque “inservíveis” e “perigosas”. A idéia de aniquilação das “raças inferiores” faz do genocídio uma política do Estado. O nazismo considerou os negros africanos, poloneses, tchecos, húngaros, romenos, croatas, sérvios e demais brancos europeus como raças inferiores a serem conquistadas. Considerou ciganos e judeus como raças a serem eliminadas (exterminou seis milhões de judeus); estatismo: contra o Estado liberal (considerado caótico) e contra as revoluções socialistas e comunistas (que recusam o Estado), o nazi-fascismo cria o Estado forte, centralizado administrativamente, militarizado, que controla toda a sociedade por meio do partido, das milícias de jovens, da educação moral e cívica, da propaganda, da censura e da delação. Existe apenas o Estado como totalidade que engloba em seu interior o todo da sociedade.

      Totalitarismo, portanto, significa Estado total, que absorve em seu interior e em sua organização o todo da sociedade e suas instituições, controlando-a por inteiro. O nazi-fascismo proliferou por toda a parte. Foi vitorioso não apenas na Itália e na Alemanha, mas, com variações, tomou o poder na Espanha (de Franco), em Portugal (com Salazar) e em vários países da Europa Oriental. Conseguiu ter partidos significativos em países como França (Ação Francesa), Inglaterra, Bélgica, Áustria, Argentina. No Brasil, deu origem à Ação Integralista Brasileira, criada por Plínio Salgado.

A Revolução de Outubro

       Em outubro de 1917, contra toda expectativa marxista, tem lugar a Revolução Russa, sob a liderança do Partido Bolchevique. Por que contra toda expectativa marxista? Porque Marx julgara que a revolução proletária só poderia realizar-se quando as contradições internas ao capitalismo esgotassem as possibilidades econômicas e políticas da burguesia e o proletariado, através da revolução, instaurasse a nova sociedade comunista. Em termos marxistas, a revolução proletária deveria acontecer nos países de capitalismo avançado, como a Inglaterra, a França, a Alemanha.
     Era essencial para a teoria da praxis revolucionária o pleno desenvolvimento do capitalismo, pois isso significava que a infra-estrutura econômica, o avanço tecnológico e o grau de organização da classe trabalhadora preparariam a grande mudança histórica. Não era concebível, portanto, a revolução na Rússia, que vivia sob o Antigo Regime (a monarquia por direito divino, absoluta ou czarista), era majoritariamente pré-capitalista, com pequeno desenvolvimento do


[551]

capitalismo em alguns centros urbanos, promovido não pela burguesia (quase inexistente), mas pelo próprio Estado e pelo capital externo (inglês, francês e alemão), sem forte consciência e organização proletárias.
        Foi ali, porém, que aconteceu a primeira revolução proletária, antecedida por duas revoluções menores: a de 1905, que instaurou o parlamento, com partidos políticos da burguesia liberal, e a de fevereiro de 1917, que proclamou a república e convocou uma assembléia constituinte, mas cujo governo provisório não realizou as reformas prometidas e prosseguiu na guerra contra a Alemanha, provocando reação popular e rebelião das tropas. Nas circunstâncias russas, o grande sujeito revolucionário não pôde ser a classe proletária organizada, mas teve que ser uma vanguarda política, liderada por intelectuais acostumados às lutas clandestinas, o Partido Bolchevique ou a fração majoritária do Partido Social-Democrata, que iria tornar-se o Partido Comunista Russo.
     Que dificuldades enfrentou a Revolução de Outubro? as dificuldades previsíveis, que toda revolução comunista enfrentaria, isto é, a reação militar e econômica do capital, sob a forma de guerra civil e de boicote econômico internacional; a existência da Primeira Guerra Mundial, que não só depauperou a precária economia russa, mas também permitiu que os poderes capitalistas enviassem tropas para auxiliar a contra-revolução, o chamado Exército dos Brancos; o fracasso da revolução comunista alemã, em 1919, da qual se esperava não só apoio para o desenvolvimento da sociedade socialista russa, mas também que fosse o estopim da revolução proletária mundial; esta, se ocorresse, livraria a revolução russa do isolamento, do boicote capitalista internacional e da ameaça permanente de invasão militar capitalista;  a ausência de forte consciência política e organização operárias num país majoritariamente camponês e no qual as atividades políticas tinham sido necessariamente obra de grupos clandestinos, formados sobretudo por intelectuais e estudantes. O contingente revolucionário mais significativo que os bolcheviques conseguiram não veio do proletariado organizado, mas das tropas (exército e marinha) rebeladas contra a guerra mundial, iniciada em 1914. A militarização, inevitável em toda revolução, no caso da russa institucionalizou-se como organização do Partido Bolchevique; a ausência de economia capitalista desenvolvida que houvesse preparado a infra-estrutura econômica e a organização sociopolítica para a nova sociedade. A revolução teve que realizar duas revoluções numa só: a burguesa, de destruição do Antigo Regime, e a comunista, contra a burguesia. Essa situação, mais a ruína econômica causada pela guerra e pela continuação da guerra civil, bem como o boicote do capitalismo internacional obrigaram ao chamado “comunismo de


[552] 

guerra”, que transformou a “ditadura do proletariado” em ditadura do Partido Bolchevique para a instauração de uma nova forma inesperada de capitalismo, o capitalismo de Estado, considerado “etapa socialista” para a futura sociedade comunista. Em outras palavras, a estatização da economia substituiu a abolição do Estado, prevista pelo Manifesto comunista.
     Assenhoreando-se do Estado, o Partido Bolchevique criou um poderoso aparato militar e burocrático, que, evidentemente, entrou em conflito com os conselhos populares de operários, camponeses e soldados, os sovietes, pois estes haviam-se organizado para realizar o autogoverno de uma sociedade sem Estado. Os sovietes foram sendo dizimados e substituídos por órgãos do Partido Bolchevique, deles restando apenas o nome, que seria colado ao de república socialista: República Socialista Soviética.
      Em 1923, o Partido Bolchevique está profundamente dividido entre a posição de Trotski – que critica a burocratização e propõe a tese da revolução permanente – e a de Stalin, que conseguira galgar o posto de secretário-geral do partido, acumulando enormes poderes em suas mãos. Doente, Lênin escreve um testamento político no qual sugere o afastamento de Stalin, alertando para o perigo de seu autoritarismo. Não foi, porém, atendido. Morre em janeiro de 1924.
       Valendo-se do cargo e colocando a direção partidária contra Trotski, Stalin assume o poder do Estado. Sob sua orientação (embora ficasse nos bastidores), as principais lideranças da revolução foram expulsas do partido; Trotski foi banido e, em 1940, assassinado por um agente stalinista, no México. Com a tese “socialismo num só país” (portanto oposta à tese marxista do internacionalismo proletário e da revolução mundial), Stalin implanta à força a coletivização da economia, sob a direção do Estado e do partido. Exerce controle militar, policial e ideológico sobre toda a sociedade, institui o “culto à personalidade” e, em 1936, começa os grandes expurgos políticos, conhecidos como “processos de Moscou”. Sempre nos bastidores, conseguiu que seus aliados forjassem todo tipo de acusação contra lideranças políticas de oposição, levando-as à condenação à morte, ou à prisão perpétua em campos de concentração. Fortaleceu a polícia secreta e consolidou o totalitarismo.
     Além da coletivização econômica, planejou a economia para investimentos na indústria pesada, sacrificando a produção de bens de consumo e os serviços públicos sociais. Prevendo a Segunda Guerra Mundial, orientou a economia para a indústria bélica, química pesada e energia elétrica, produzindo, às custas de enormes sacrifícios e privações da população, o maior crescimento econômico da história da Rússia, que se tornou potência econômica e militar mundial.

O totalitarismo stalinista

      Embora o totalitarismo russo esteja ligado indissoluvelmente ao nome de Stalin, isso não significa que tenha terminado com sua morte.


[553]

 Até a chamada glasnost (transparência), proposta nos anos 80 por Gorbatchev, existiu o stalinismo sem Stalin, ou seja, o totalitarismo.
     Muitos traços do stalinismo são semelhantes aos do nazi-fascismo (centralização estatal, partido único com controle total sobre a sociedade, militarização, nacionalismo, imperialismo, censura do pensamento e da expressão, propaganda estatal no lugar da informação, campos de concentração, invenção contínua dos “inimigos internos”), mas a diferença fundamental e trágica entre eles está no fato de que o stalinismo sufocou a primeira revolução proletária e deformou profundamente o marxismo, marcando com o selo totalitário os partidos comunistas do mundo inteiro.
       As grandes teses de Marx foram destruídas pelas teses stalinistas: à tese marxista da revolução proletária mundial, o stalinismo contrapôs a tese do socialismo num só país, transformando-a em diretriz obrigatória para os partidos comunistas do mundo inteiro. Isso significou que tais partidos deveriam abandonar práticas revolucionárias em seus países, para não prejudicar as relações internacionais da União Soviética. Eram estimuladas, porém, as guerras de libertação nacional contra os países colonialistas sempre que isso fosse do interesse econômico e geopolítico da Rússia; à tese marxista da ditadura do proletariado para a derrubada do Estado, o stalinismo contrapôs a ditadura do partido único e do Estado forte; à tese marxista da abolição do Estado na sociedade comunista sem classes sociais, contrapôs o agigantamento do Estado, a absorção da sociedade pelo aparelho estatal e pelos órgãos do partido, cuja burocracia constituiu-se numa nova classe dominante, com interesses e privilégios próprios; à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a pequena burguesia, bem como à afirmação de que, em muitos processos revolucionários, parte da burguesia e da pequena burguesia se aliam ao proletariado, mas o abandonam a partir de certo ponto, devendo ele prosseguir sozinho na ação revolucionária, o stalinismo contrapôs a tese oportunista da “estratégia” e da “tática”, segundo a qual, em certos casos, o proletariado faria alianças e nelas permaneceria e, em outros, não faria aliança alguma, se isso não fosse do interesse da vanguarda partidária; à tese marxista do internacionalismo proletário (“Proletários de todos os países, uni-vos”, dizia o Manifesto comunista), contrapôs o nacionalismo e o imperialismo russos, primeiro invadindo e dominando a Europa Oriental, e depois os países asiáticos não dominados pela China; à tese marxista do partido político como instrumento de organização da classe trabalhadora e expressão prática de suas idéias e lutas, contrapôs a burocracia partidária como vanguarda política, que não só “representa” os interesses proletários, mas os encarna e os dirige, pois é detentora do poder e do saber;


[554]

 à tese marxista da relação indissolúvel entre as idéias e as condições materiais, isto é, entre teoria e prática, que permitia o desenvolvimento da consciência crítica da classe trabalhadora, contrapôs a propaganda estatal, a ideologia do chefe como “pai dos povos”, o controle da educação e dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado; à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa relação dialética, que o conhecimento é histórico e um processo interminável de análise e compreensão das condições concretas postas pela realidade social, o stalinismo contrapôs uma invenção, o Diamat (materialismo dialético), isto é, o marxismo como doutrina a–histórica, fixada em dogmas expostos sob a forma de catecismos de vulgarização da ideologia stalinista. Foi tão longe nisso, que considerou função do Estado definir o pensamento correto.

    Para tanto, os intelectuais do partido foram encarregados de determinar as linhas “corretas” para a Filosofia, as ciências e as artes. Instituiu-se a psicologia oficial, a medicina e a genética oficiais, a literatura, a pintura, a música e o cinema oficiais, a filosofia e a ciência oficiais, encarregando-se a polícia secreta de queimar obras, prender, torturar, assassinar ou enviar para campos de concentração os “dissidentes” ou “desviantes”. Os herdeiros de Stalin foram mais longe: consideravam que, como o partido e o Estado dizem a verdade absoluta, os “desvios” intelectuais, artísticos e políticos eram sintomas de distúrbios psíquicos e de loucura, enviando os “dissidentes” para hospitais psiquiátricos; à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria história quando toma consciência de sua situação e luta contra ela, aprendendo com a memória dos combates e a tradição das derrotas, o stalinismo contrapôs a idéia de história oficial da classe proletária, identificada com a história do partido comunista e com a interpretação dada por este último aos acontecimentos históricos, roubando assim dos trabalhadores o direito à memória; à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora não são indivíduos dessa ou daquela classe, mas uma outra classe social enquanto classe, contrapôs a idéia de “inimigos do povo saídos do seio do próprio povo ” como inimigos de sua própria classe, porque são “agentes estrangeiros infiltrados no seio do povo uno, indiviso, bom e homogêneo”; à tese de Marx da nova sociedade como concretização da liberdade, da igualdade, da abundância, da justiça e da felicidade, o stalinismo contrapôs o “operário-modelo” e o “militante exemplar ”, acostumados à obediência cega aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia social imposta por eles. Viver pelo e para o Estado e o partido tornaram-se sinônimos de felicidade, liberdade e justiça.
      A transformação das idéias e práticas stalinistas em instituições sociais fez com que o stalinismo não fosse um acontecimento de superfície, que pudesse ser apagado com a morte de Stalin. Pelo contrário. Foi instituída uma nova

  [555]


formação social , que modelou corpos, corações e mentes e que só desapareceu, parcialmente, no fim dos anos 80 e inícios dos 90, porque a crise econômica, provocada pelo delírio armamentista, fez emergirem contradições sufocadas durante 70 anos.

A democracia como ideologia

       Dois acontecimentos políticos marcaram o período posterior à Segunda Guerra Mundial: a guerra fria e o surgimento do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). A guerra fria foi a divisão geopolítica, econômica e militar entre dois grandes blocos: o bloco capitalista, sob a direção dos Estados Unidos, e o bloco comunista, sob a direção da União Soviética e da China. Uma das principais razões para essa divisão foi militar, isto é, a invenção da bomba atômica, que punha fim às guerras convencionais.
      Inicialmente, cada bloco julgava que a posse de armamentos nucleares lhe daria mais poder para eliminar o outro. Pouco a pouco, porém, a chamada “corrida armamentista” deixou de visar diretamente à guerra, voltando-se para a intimidação recíproca dos adversários, limitando suas ações imperialistas.
       Finalmente, percebeu-se que uma guerra não convencional ou nuclear teria resultado zero, ou seja, não teria vencedores, pois o planeta seria inteiramente destruído. Antes, porém, que se chegasse a essa conclusão, a guerra fria definiu o alinhamento político e econômico de todos os países à volta dos dois blocos hegemônicos.
      O Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazi-fascismo e da revolução comunista. A crise econômica gerada pela guerra, as críticas nazi-fascista e socialista ao liberalismo, a imagem da sociedade socialista em construção na União Soviética e na China, fazendo com que os trabalhadores encontrassem nelas (ignorando o que ali realmente se passava) um contraponto para as desigualdades e injustiças do capitalismo, tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado, corrigindo os problemas econômicos e sociais.
        O Estado passa a intervir na economia, investindo em indústrias estatais, subsidiando empresas privadas na indústria, na agricultura e no comércio, exercendo controle sobre preços, salários e taxas de juros. Assume para si um conjunto de encargos sociais ou serviços públicos sociais: saúde, educação, moradia, transporte, previdência social, seguro-desemprego. Atende demandas de cidadania política, como o sufrágio universal.
        Sob os efeitos da guerra fria e do Estado do Bem-Estar Social, o bloco capitalista procurou impedir, nos países economicamente subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo (América Latina, África, Oriente Médio), rebeliões populares que

  [556] 

desembocassem em revoluções socialistas. O perigo existe por dois motivos principais: ou porque os países do Terceiro Mundo são colônias dos países capitalistas, ou porque neles a desigualdade econômico-social, a miséria e as injustiças são de tal monta que, nas colônias, guerras de libertação nacional e, nos demais países, rebeliões populares podem acontecer a qualquer momento e transformar-se em revoluções. O caso de Cuba, em 1958, evidenciou essa possibilidade.
      Os países mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas: através do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), fizeram empréstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos serviços sociais e em empresas estatais; e, através dos serviços de espionagem e das forças armadas, ofereceram “ajuda” militar para reprimir revoltas e revoluções. Com isso, estimularam, sobretudo a partir dos anos 60, a proliferação de ditaduras militares e regimes autoritários no Terceiro Mundo, como foi o caso do Brasil.
       No centro do discurso político capitalista encontra-se a defesa da democracia. Vimos que as formações sociais totalitárias cresceram à sombra da crítica à democracia liberal, considerada responsável pela desordem e caos socioeconômicos, porque abandona a sociedade à cobiça ilimitada dos ricos e poderosos. A democracia é o mal. Por seu turno, na luta contra os totalitarismos, os Estados capitalistas afirmaram tratar-se do combate entre a opressão e a liberdade, a ditadura e a democracia. A democracia é o bem.
       Nos dois casos, a democracia, erguida ora como o mal, ora como o bem, deixava de ser encarada como forma da vida social para tornar-se um tipo de governo e um instrumento ideológico para esconder o que ela é, em nome do que ela “vale”. Tanto assim, que os grandes Estados capitalistas, campeões da democracia, não tiveram dúvida em auxiliar a implantação de regimes autoritários (portanto antidemocráticos) toda vez que lhes pareceu conveniente. Embora liberalismo e Estado do Bem-Estar Social (ou social-democracia) sejam diferentes quanto à questão dos direitos – o primeiro limita os direitos à cidadania política da classe dominante, o segundo amplia a cidadania política e acolhe a idéia de direitos sociais -, no que tange à democracia são semelhantes. Como a definem? Como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer?
     Em primeiro lugar, que identificam liberdade e competição – tanto a competição econômica da chamada “livre iniciativa”, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições. Em segundo lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria.

 [557]
 
    Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer).
     Em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia. Em outras palavras, defendem a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política – a política seria assunto dos representantes, que são políticos profissionais -, que, por seu turno, favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, evitando, dessa maneira, uma participação política que traria à cena os “extremistas” e “radicais” da sociedade.
       A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais.
     Vista por esse prisma, é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico que preside a idéia de direitos do cidadão. Em outras palavras, desde a Revolução Francesa de 1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. A democracia é formal, não é concreta.

A sociedade democrática

         Vimos que uma ideologia não nasce do nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida, dissimulada e imaginária, a praxis social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia democrática. Em outras palavras, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber.
     Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar.
        As idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as

 [558]

divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade. As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia.
     Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. Uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.
      Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os interesses dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros. Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que, por exemplo, numa região de uma grande cidade, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mesma região, um outro grupo social, favelado, tenha carência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra. Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência; temos aí um conflito de interesses.
       Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um outro conflito de interesses. Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho.

[559]

       Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.

A criação de direitos

       Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho.
       A observação de Aristóteles e, depois, a de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real.
      Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê -los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.
       Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana.

  [560]

     Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis.
       A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é representativa. O direito à participação tornou-se, portanto, indireto, através da escolha de representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e verdadeira.
       Falsa, porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e, portanto, em relação a esse último, ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação. Verdadeira, porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos homens adultos “independentes”. Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo.
        Vemos aqui, portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um direito. As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis) e, a partir destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura -, os direitos das chamadas “minorias”xxv – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios – e o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares.
      As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais. A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso, dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas:

[561]

1. a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo . Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado;

2. a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.

Os obstáculos à democracia

    Liberdade, igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os pobres (Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas (Marx). É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.
     É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.
     Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários, com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas.
        A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de
 
[562]

neoliberalismo, implicou o abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos sociais) e o retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no planejamento econômico.
      O abandono das políticas sociais chama-se privatização, e o do planejamento econômico, regulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos.
      Essa mudança nas forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de grandes massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo, como o Brasil. Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo dos produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços. Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação).
      O direito à participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer.
      Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras,


[563]

a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir.
        Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos.
      Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos. Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política. Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.

Dificuldades para a democracia no Brasil

      Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.
       Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas,

[564]

 em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito.
     Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.
    O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade.
       Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isso.
      Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário. Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família (o despotes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.
        A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores.


[565]

Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém).
        A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei.
        As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). Como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.