quarta-feira, 3 de novembro de 2010

TEXT: Democracia


A democracia.
TEMAS DE FILOSOFIA.
Maria Lúcia Aranha
"O Brasil é uma democracia?" Diante desta pergunta, talvez qualquer pessoa responda, sem muito esforço, afirmativamente.
Afinal, na década de 80 começamos a sair da ditadura militar, participamos da campanha das "Diretas-já", após vinte anos de jejum cívico escolhemos um presidente civil pelo voto direto, livre e universal. O Brasil é uma democracia porque, além das eleições livres, há liberdade de imprensa (não há mais censura), há igualdade racial, liberdade de pensamento etc.
Mas alguém poderia objetar: e os altos índices de miserabilidade do povo brasileiro? Seria realmente democrático um país que está entre os cinco com pior distribuição de renda no mundo? E será que, de fato, existe igualdade sexual e racial? Há iguais oportunidades de trabalho? Além disso, o atendimento de saúde, educação e habilitação tem sido estendido de forma homogênea a todos os segmentos sociais?
Não há como negar essa contradição. De fato, o Brasil é e não é uma democracia. Como é possível? É o que veremos a seguir.
Democracia: formal e substancial
O ideal de uma sociedade verdadeiramente democrática é que ela seja uma democracia formal e substancial.
Embora haja variações nos graus de aproximação desse ideal, sabemos que pelo menos até agora nenhuma nação preencheu totalmente tais requisitos, o que não nos impede de elaborarmos projetos a serem perseguidos na construção de um mundo melhor.
O aspecto formal da democracia consiste no conjunto das instituições características deste regime: o voto secreto e universal, a autonomia dos poderes, pluripartidarismo, representatividade, ordem jurídica constituída, liberdade de pensamento e expressão e assim por diante. Trata-se propriamente das "regras do jogo" democrático, do estabelecimento dos meios pelos quais a democracia se exerce.
A democracia substancial diz respeito não aos meios, mas aos fins que são alcançados, aos resultados do processo. Dentre estes valores se destaca a efetiva — e não apenas ideal — igualdade jurídica, social e econômica.
Portanto, a democracia substancial diz respeito aos conteúdos alcançados de fato.
Dentre os mais diversos países constatamos que em alguns pode haver democracia formal, sem que se tenha conseguido cumprir as promessas da democracia substancial, enquanto em outros pode haver democracia substancial implantada sem recurso ao exercício democrático do poder. É o caso das democracias para o povo, mas não pelo povo.
A fim de melhor compreender tais contradições, vamos examinar quatro campos possíveis do exercício democrático: econômico, social, jurídico e político.
a) Democracia econômica: há democracia econômica quando existe justa distribuição de renda, iguais oportunidades de trabalho, contratos livres, sindicatos fortes. Tais aspectos formais podem levar ou não à efetiva democracia substancial. Sabemos que a livre concorrência, sem os devidos cuidados para ser mantido o interesse coletivo, pode provocar conseqüências danosas para a maioria da população. Por outro lado, também o controle total feito pelo Estado é paternalista e pode levar a distorções, como ocorreu nas sociedades socialistas do Leste europeu, onde os bens de produção foram apropriados pelo Estado.
b) Democracia social: embora as pessoas sejam diferentes e participem de grupos diversos, ninguém pode ser discriminado, e todos devem ter possibilidade de acesso aos bens materiais como moradia, alimentação e saúde, e aos bens culturais em todos os níveis; educação, profissionalização, lazer, arte. Ê preciso existir abertura para a produção e consumo da cultura, e que não haja censura, a fim de que as informações circulem livremente. Numa sociedade democrática o saber deve ser acessível a todos sem tomar-se privilégio de alguns.
c) Democracia jurídica: a democracia supõe o estado de direito, o respeito à Constituição, a autonomia do Poder Judiciário. O poder autoritário se caracteriza pela submissão dos poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo. Basta lembrar o tempo da ditadura militar no Brasil, quando se governava por meio de atos institucionais, indiferentes à soberania do Congresso. A continuidade do uso e abuso de medidas provisórias indica ainda resquícios do estado de arbítrio.
Para ser substancial, a democracia jurídica deve se basear em leis que realmente atendam ao interesse da comunidade e precisa contar com uma justiça ágil e resistente às pressões de grupos.
d) Democracia política: o coração da democracia está no reconhecimento do valor da coisa pública, separada dos interesses particulares. Neste sentido, há a exigência da institucionalização do poder, ou seja, quem ocupa o poder o faz enquanto representante do povo, e, como tal, não é proprietário do poder, mas ocupa um "lugar vazio", um espaço que será assumido também por outras pessoas, garantindo a rotatividade do poder.
O acesso ao poder na democracia política é ascendente, fazendo-se "de baixo para cima", pela escolha popular e com os recursos do pluripartidarismo, garantia da existência da oposição efetiva. Pois se a democracia supõe o consenso, isto é, a aceitação comum das regras após as discussões, tal procedimento não elimina a permanência do dissenso, a possibilidade de discordar sempre que necessário. Aliás, uma característica da democracia é a aceitação do conflito como expressão das opiniões divergentes. Faz parte do processo democrático "trabalhar" o conflito e não negá-lo ou camuflá-lo.
Além disso, a ampliação da democracia ocorre paralelamente à multiplicação dos órgãos representativos da sociedade civil, de modo a ativar as formas de participação dos cidadãos em geral. É isto que pode tornar a democracia uma policracia, o regime que não tem apenas um centro, mas cujo poder se irradia para inúmeros pontos da sociedade.
Por exemplo, são importantes as organizações tanto ocasionais como permanentes que representam interesses de setores da coletividade, tais como associações de bairros, mutirões, grupos contra a violência, grupos ecológicos, ao lado de outras importantes instituições como a Ordem dos Advogados, a Associação de Imprensa, os partidos políticos, os sindicatos etc.
Tal difusão de poderes dá condições para o melhor cumprimento da vontade geral, bem como para o controle dos abusos, exigindo-se maior transparência das ações nas diversas instâncias de poder.
O que prejudica o processo de democratização é o desvirtuamento da atividade política, voltada para interesses particulares, a descaracterização dos partidos sem estofo ideológico ao sabor de casuísmos e conchavos, e a grande maioria despolitizada e não-participante.
Democracia: direta ou representativa?
Quanto ao tipo de soberania popular, distinguimos a democracia direta da democracia representativa.
A mais antiga democracia de que se tem notícia é a ateniense. Trata-se da democracia direta, em que todo cidadão tem não só o direito, como também o dever de participar da assembléia pública a fim de decidir os destinos da polis. A igualdade que daí resulta se caracteriza pela isonomia (igualdade perante a lei) e pela isegoria {direito à palavra na assembléia).
O apogeu da democracia grega se deu no século V a.C, mas, a bem da verdade, é preciso lembrar que na sociedade grega os escravos, mulheres e estrangeiros não eram considerados cidadãos e, portanto se achavam excluídos da vida pública. Restava, de fato, apenas 10% do corpo social capaz de decisão política. O que importa, no entanto, é o surgimento do ideal democrático como um valor novo que se contrapõe à concepção aristocrática de poder.
Apesar da experiência democrática, os principais teóricos gregos, como Platão e Aristóteles, vêem com reserva a democracia, que para eles ocupa o último lugar dentre as formas de governos.
Na Idade Moderna surgem as teorias políticas contratualistas (que abordaremos no próximo capítulo) e que começam a ocupar-se com a questão da legitimidade do poder.
Para um liberal como Locke, a legitimidade do poder se encontra na origem parlamentar do poder político.
Isto significa que a ocupação de um cargo político não deve resultar de um privilégio aristocrático, mas do mandato popular alcançado pelo voto: a representação política torna-se legítima porque nasce da vontade popular.
Em outras palavras: na Idade Média transmitia-se por herança tanto a propriedade como o poder político; o herdeiro do rei, do conde ou do marquês recebia não só os bens como também o poder sobre os homens que viviam nas terras herdadas. Já com o liberalismo, estabelece-se a distinção entre sociedade política e sociedade civil, entre público e privado.
Na verdade, o liberalismo dos séculos XVII e XVIII não era igualitário, mas fundamentalmente elitista. Por isso, é preciso entender que a representação política se referia aos que possuíam propriedades e, com o voto censitário, excluía-se do poder a grande maioria, apenas "proprietária do seu corpo", ou seja, da força de trabalho.
Ainda no século XVIII, em pleno período de valorização da legitimidade da representação, Rousseau defende a democracia direta. Para ele, com o contrato social, cada indivíduo aliena incondicionalmente seu poder em favor da coletividade, mas a vontade geral não pode ser alienada nem representada. Isto significa que para Rousseau os deputados e governantes não são representantes do povo, mas apenas seus oficiais, estando subordinados à soberania popular, a única que decide por meio de assembléias, plebiscitos e referendos.
A vontade geral é um conceito fundamental para compreender a democracia rousseauísta. Todo indivíduo é ao mesmo tempo uma pessoa privada e uma pessoa pública (cidadão): enquanto pessoa privada trata de seus interesses particulares, e enquanto pessoa pública é parte de um corpo coletivo que tem interesses comuns. Nem sempre o interesse de um coincide com o de outro, pois muitas vezes o que beneficia a pessoa particular pode ser prejudicial ao coletivo. Aprender a ser cidadão é justamente saber qual é a vontade geral, típica do interesse de todos enquanto componentes do corpo coletivo, mesmo que à revelia dos seus próprios interesses enquanto pessoa particular.
O próprio Rousseau reconhecia as dificuldades em implantar a democracia direta, sobretudo em nações de território extenso e grande densidade populacional.
Mas essa objeção não nos deve desanimar na busca do aperfeiçoamento do jogo democrático. Ao contrário, o desafio está justamente em descobrir formas para melhor aproximação dos ideais da democracia.
Democracia e cidadania
Se até hoje temos nos contentado com a democracia representativa, não há como deixar de sonhar com mecanismos típicos da democracia direta que possibilitem a presença mais constante do povo nas decisões de interesse coletivo.
Ma Constituição brasileira de 1988 foi introduzida a "iniciativa popular de projetos de leis", através de manifestação do eleitorado, mediante porcentagem mínima estipulada conforme o caso. Essa forma de atuação ainda será regulamentada e devem ser enfrentadas dificuldades as mais diversas para o exercício efetivo.
Mas alguns poderiam argumentar: para participar enquanto cidadão pleno é preciso que haja politização, caso contrário haverá apatia ou manipulação. Daí o desafio: quem educa o cidadão?
Cidadania se aprende no exercício mesmo da cidadania. Embora a escola seja aliada importante, não é nela fundamentalmente que se dá a aprendizagem, pois há o risco da ideologia e do discurso vazio, quando o ensino não é acompanhado de fato pela ampliação dos espaços de atuação política do cidadão na sociedade.
A participação popular se intensifica com as já referidas organizações saídas da sociedade civil. Essas organizações, ao colocarem seus representantes em confronto com o poder constituído, tornam-se verdadeiras escolas de cidadania. O importante do processo é que, ao lado dos outros poderes, como o poder oficial do município, do estado e federal, e o poder das elites econômicas, desenvolve-se o poder alternativo. Ou seja, o esforço coletivo na defesa de interesses comuns transforma a população amorfa, inexpressiva e despolitizada em comunidade verdadeira.
Na luta contra a tirania e o poder arbitrário, nem as regras da moral, nem apenas as leis impedirão o abuso do poder. Na verdade, como já dizia Montesquieu, só o poder controla o poder.

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